Texto escrito na madrugada do domingo 22 de fevereiro de 2009. Depois de escrevê-lo, achei por bem não publicá-lo. Hoje, revendo-o decidi pela publicação. Antes de ser um desabafo pessoal serve para a análise de nossas decisões humanas em relação às experiências religiosas em comunidades de fé, de como estas experiências nos marcam, nos moldam, nos ensinam e nos formam. Fiz algumas alterações, quase todas em aspectos meramente lingüísticos. Espero que não ofenda a ninguém e que você, leitor, goste, e pense na sua experiência religiosa antes de exercer juízo de valor.
Quem conhece a história completa da minha vida sabe que me dediquei dos 11 aos 23 anos, de forma ininterrupta, ao Ministério com Surdos que liderava, na minha igreja. Sabe que empenhei constantemente a uma proposta religiosa que visava, sobretudo, a evangelização e a promoção social dos surdos de Valadares, e que para tanto, acabei tornando-me, por forças das circunstâncias, um representante dos anseios deste estrato social.
Ao sair de Valadares ano passado não pensava que meus planos não obteriam êxito. A possibilidade de que caso nada desse certo e eu ter que voltar para minha cidade e para meu contexto, até aquele momento não fora considerada. Acontece que foi isso que aconteceu. Voltei. Entretanto, não atuo mais neste Ministério.
Isso tem causado um incômodo em algumas pessoas, que acaba por me incomodar também. Ser ‘cobrado’ a continuar fazendo o que sempre me viram fazer é uma das coisas mais desagradáveis que vivencio. Brinco dizendo que ‘completei a carreira e perdi a fé’. Mas essa brincadeira tem um fundo de verdade.Então, para os que queriam saber por que parei minhas atividades eclesiásticas com surdos, destaco entre outras, quatro razões:
1. PORQUE NUNCA PEDIRAM PARA EU COMEÇAR:
Exatamente! Os surdos nunca me pediram para eu começar, para eu evangelizá-los, para ‘salvá-los da perdição’, para incluí-los na sociedade. Eu que quis e fui atrás. Por anos, ás vezes futilmente preocupado em aspectos quantitativos, perguntava-me o que podia ser feito para que o Ministério expandisse e alcançasse mais surdos, porém a resposta só encontrei no final de 2007, quando uma surda sinalizou para mim essa razão: "NÓS SURDOS NUNCA PEDIR VOCE FAZER NADA POR NÓS. VOCÊ FEZ PORQUE VOCÊ QUERER".
Aquilo doeu muito no momento. Creio que ela nem se lembre mais que me disse isto, pois continuamos amigos. Enfim. Mas com o tempo aquelas palavras fizeram razão para mim. E quando isto aconteceu, foi como se a ficha tivesse caído. Realmente, muitas vezes me martirizei tanto por algo que não me foi pedido. E isso é tão comum em ministérios de outras igrejas. Vejo pessoas tão ‘ativistas’, batalhadoras e que não vêem resultados e que ficam frustradas. Apesar de ser uma experiência pessoal, para estes ‘companheiros de missão’ deixo essa indagação: os surdos realmente te pediram alguma coisa?
Aprendi somente agora que não devo fazer nada além de minhas forças. Hoje, e depois de compreender isto, confesso que não tenho mais forças para continuar. Então, já que não me foi pedido, e que já não tenho mais forças para continuar, resolvi parar.
2. PORQUE JÁ FIZ O PUDE NAQUELE CONTEXTO:
Poderia elencar aqui diversas razões pelas quais eu já tinha a compreensão comigo mesmo de que meu tempo já havia esgotado. O certo é que decorridos 12 anos, no mesmo lugar, todos os domingos pela manhã, de noite, EBD, associação, etc, enfim, aquilo já tinha se tornado uma rotina, que se desenvolveu, sobretudo, de forma pesada e impensada. Tal como um relacionamento que se desgasta com o tempo assim se tornou minha relação com aqueles surdos. Já tinha ensinado o que poderia ter ensinado. Já tinha aprendido o que podia ter aprendido. Já tinha me dedicado, dentro das minhas possibilidades, o máximo que pude. Já tinha o resultado realístico que não se alteraria para melhor mais. O estado de estagnação era preponderante. Mesmo que eu não tivesse me mudado de cidade, essa situação teria que chegar ao fim.
Pode ser que a vida com suas reviravoltas, faça-me um dia retornar, mas isto só ocorrerá se for em outra igreja, em outro contexto e se principalmente todas as razões elencadas aqui – e outras mais - deixarem de existir, de fato. Se não for assim, realmente parei por aqui.
3. PORQUE NÃO ME VI VALORIZADO:
Sei que este aspecto pode ser compreendido por você que o lerá de diversas formas. Não quero leia-o como uma crítica da minha parte, até porque o que aconteceu e relatarei logo abaixo, foi com o meu pleno consentimento. Então, se há alguém culpado, o principal culpado, sou eu mesmo. Mas enfim, vamos lá:
Não me vi valorizado primeiramente pelos próprios surdos. É entendimento corrente entre os que têm ‘tempo de carreira’ neste segmento que os surdos tratam-nos como os cegos tratam suas bengalas. Até quando for necessário o uso das bengalas, estas (as bengalas) são consideradas úteis para os cegos. No dia em que parece um cão-guia, ou mesmo ela (bengala) começa a apresentar defeitos pelo tempo, é descartada por outra nova. Assim somos nós ouvintes que atuam em prol da comunidade surda, seja dentro do segmento eclesiástico, seja em nível social, educacional, político. E isto já se tornou até piada no meio deles. A partir disto, com o passar do tempo fui vendo que, com raríssimas exceções, os surdos só me procuravam quando lhes era necessário. A ingênua amizade recíproca deu lugar ao utilitarismo. E disto, estou fora, sejam as pessoas surdas ou ouvintes.
Outro aspecto onde não me vi valorizado foi no próprio contexto eclesiástico. Se fosse levado em consideração os aspectos como formação acadêmica na área, possibilidades financeiras e casos análogos - tais como congregações, adolescentes, juventude, música - o reconhecimento, sobretudo em aspectos financeiros, deveria ter existido. Aprender LIBRAS, se atualizar constantemente, dedicar-se ao longo processo de conhecimento de campo, trabalhar como um pastor específico para eles demandou-me tempo, custos, dedicação, etc. E se para outros casos – leia-se ministérios - na minha experiência, isto era levado em consideração, nada mais justo que isso se expandisse para o ministério com surdos e eu fosse contemplado. Nunca aconteceu e eu não iria pedir, aliás, como nunca pedi.
Entendo que reconhecimento vai além de se parabenizar nos finais dos cultos (e isso, que não custa nada, foi tão raro durante doze anos). Reconhecimento passa por valorização, por estimular, por investir em progredir e prosseguir neste caminho. Não encontrei na minha experiência esta valorização. E isto não é uma experiência somente minha. Percebo que muitas igrejas gostam de se mostrarem inclusivas, mas não valorizam financeiramente as pessoas que doam suas vidas em prol daquilo. Hoje, as igrejas que mantém belos ministérios com surdos foram as que aprenderam que pessoas que atuam com surdos abdicam de muitas coisas de suas vidas, e por isso, são dignas de seus salários. O Estado, que aprendeu com a igreja a incluir, já percebeu isto e sabe valorizar minhas qualificações na área, tanto o é que hoje meu contato com surdos é meramente profissional, na seara da Administração Pública!
Portanto, sendo que eu consenti que isto me envolvesse, coube somente a mim essa decisão de parar. Não culpo a ninguém por isto, apenas a mim mesmo. Ficou a lição de que devo valorizar quem se dedica a viver em prol das coisas religiosas, porque além dos temores típicos de sua fé, estas abdicam constantemente de outras fontes de recursos de sobrevivência, e só por isso, já fazem jus ao reconhecimento financeiro para sobreviverem.
4. PORQUE AFETOU MINHA SAUDE EMOCIONAL E MINHA FÉ:
Esta talvez seja a razão que mais me afetou, levando-me a esta decisão. Deixar de ser chamado pelo nome próprio para ser reconhecido como o ‘rapaz dos surdos’, ‘o intérprete dos surdos’, afeta qualquer estrutura emocional. Chegou ao ponto onde estava me fazia mal. Não me sentia mais feliz. Ver que minha vida eclesiástica é sinônima de surdez é horrível. Saber que não pude entrar na minha igreja e participar de um culto como alguém normal por 12 anos estava me deixando angustiado. Minha estrutura psicológica estava pedindo para parar. Meu corpo, robótico que se tornou, idem.
O pior foi quando esse cansaço emocional começou a afetar minha fé, fragilizando-a. Comecei a colocar em cheque tudo que aprendi a respeito de Deus. Indaguei: poderia Ele deixar-me chegar neste ponto se o que mais desejei era somente serví-lo? Será que Deus usaria da minha humilhação (porque em alguns momentos foi isso que vivi) para alcançar os objetivos tidos ‘cristãos’ pelos quais eu lutava? Seria Deus um Deus injusto, que não valoriza a dignidade humana, a começar pela minha? Precisava mesmo eu passar todo esse martírio para serví-lo, para fazê-lo conhecido e aceito no meio deste estrato social?
A primeira razão exposta no inicio desta postagem me fez cessar esses questionamentos de fé, essa crise. Será que Deus em algum momento me pediu para fazer isto? A partir desta pergunta que fiz a mim mesmo, senti como se tivesse tirado um fardo das costas, e Deus do paredão em que o tinha colocado. Minha fé hoje sofre os efeitos disto, a partir do momento em que tenho procurado me manter mais pela racionalidade da fé, e partir disto, determinadas atitudes e comportamentos eclesiásticos me faz perguntar: Deus pediu realmente isto para esse povo? Será que Ele está nisto mesmo?
Enfim, é claro que há outras justificativas para eu ter parado. Algumas que não publicaria porque só interessam a mim e a Deus. Ele as conhece e sabe que, independentemente de qualquer coisa que aconteceu ou venha a acontecer, eu o amo. Eu sei, que como pecador que sou, sou carente de sua graça e de seu amor constante sobre mim. E que essa graça me basta e é tudo o que necessito.
A vida continuará. Não sei quais as próximas páginas que serão escritas, nem se em seus conteúdos haverá a presença dos surdos ou da língua de sinais, numa visão eclesiástica. Provavelmente, de forma ou outra, continuarão presentes, pelo menos no aspecto acadêmico (ensino e aprendizado lingüístico) e sócio-jurídico. Só sei que nas páginas que hoje escrevo, esta decisão está sendo marcada, porque me faz bem, porque me é necessário tomá-la.
Valeu-me a pena essa experiência religiosa? Lógico! Viveria tudo de novo? Acho que não, mas os aprendizados estarão para sempre na minha existência.
Espero ter explicado e encerrado o assunto, bem como as inconvenientes cobranças! Página virada!
A vida continuará. Não sei quais as próximas páginas que serão escritas, nem se em seus conteúdos haverá a presença dos surdos ou da língua de sinais, numa visão eclesiástica. Provavelmente, de forma ou outra, continuarão presentes, pelo menos no aspecto acadêmico (ensino e aprendizado lingüístico) e sócio-jurídico. Só sei que nas páginas que hoje escrevo, esta decisão está sendo marcada, porque me faz bem, porque me é necessário tomá-la.
Valeu-me a pena essa experiência religiosa? Lógico! Viveria tudo de novo? Acho que não, mas os aprendizados estarão para sempre na minha existência.
Espero ter explicado e encerrado o assunto, bem como as inconvenientes cobranças! Página virada!
Um texto de caráter sério, ao mesmo tempo que justifica é também usado como desabafo. Entendo que essa experiência com as comunidades cristãs (evangélicas) é verdade na vida de muitos.
ResponderExcluirDepois de ter lido sua fala, as vezes me vejo assim como vc se sentia...dificil..triste...angustiante...
ResponderExcluirAmado irmão, sua transparência e sinceridade são evidentes no relato acima. Quem nós designou para trabalhar, fazer a obra foi Jesus.
ResponderExcluirJesus veio e morreu na cruz por que ele quis, ninguém pediu. Com certeza Ele foi é muito desvalorizado até hoje. Seguir Jesus não é facil. Tenho certeza que vc ficou muito sobrecarregado, alimentou a alma do surdo e a sua ficou com fome. Sua alma também precisa ser alimentada. Nesse trabalho precisamos, orar muito, ler a palavra, jejuar e pedir que DEUS coloque pessoas no nosso caminho para dividir o peso da cruz. Edmarcius Jesus te ama!