sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

SOBRE A RELAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA – PARTE 5 – MAQUIAVEL


Maquiavel (1469 – 1527) é um filósofo e político italiano, que representa a Filosofia Moderna na divisão em épocas da historiografia da Filosofia, pois ao romper com o pensamento político medieval e com o humanismo cívico do Renascimento, inaugura o pensamento político moderno, destacando-se com suas obras “O Príncipe” e “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio” (Discorsi). Diferentemente de todos os filósofos anteriores, é Maquiavel que subordina toda teoria e qualquer religião à política, sendo a prática, portanto, o fim para todas as preocupações humanas.

Em razão dessa primazia da política sob qualquer teoria, o filósofo apresenta uma crítica ao Cristianismo, pois entende que esta religião guarda desapreço pelo mundo e pelos negócios públicos. O cristão não tem para si a ação política como a ação por excelência, uma vez que o cristianismo busca a tranqüilidade da contemplação, do ócio, o que provoca desestímulo à prática, causa certa ‘preguiça’ e a “fraqueza em que a moderna religião fez mergulhar o mundo” (Maquiavel, 2000, II, 2). A religião cristã, considerada nefasta pelo filósofo por não ter apreço à prática, faz com que seus seguidores se preocupem em salvar suas almas antes mesmo de salvar sua pátria, representando um orgulho, um egoísmo e maldade para com o mundo e a pátria.

Arendt (2002, p. 300) ressalta que o filósofo em tela, “não é um ateu moderno, que não crê em Deus”. Trata-se de uma pessoa que coloca “em risco sua alma” e que enfrenta “a danação eterna pelo seu país” e por isso, entende que os cristãos são egoístas, uma vez que “vivem por sua própria salvação ao invés de redimir seu país”, permanecendo “fora da esfera pública, e não pronunciam exortação nessa esfera”

Nesse contexto Maquiavel elogia a religião pagã  dos romanos - 
e igualmente às religiões pagãs de outros povos da Antiguidade -, pois a considerada como um instrumento da política, na medida em que os cidadãos se fidelizam ainda mais à república ao acreditarem que os deuses estão a favor de um feito político, histórico, entendendo-o como divino.

Na filosofia maquiaveliana, a manipulação do povo pela religião tem por finalidade a salvação pública, a preservação da república. Uma república estável é aquela que guarda a durabilidade e a perpetuidade histórica, e que causa a ausência de tentativas de obras e feitos re-fundadores, perpassando gerações. (Maquiavel, 2000, I. 11). Desta forma, ou seja, com a subordinação da teoria à prática, uma religião é virtuosa, é útil para os fins políticos, no momento que garante a seguridade da república, não havendo importância se a religião utilizada como instrumento seja falsa, se os políticos desacreditem em seus oráculos, vaticínios, augúrios. Pelo contrário, segundo Maquiavel (2000, I. 12), devem os governantes “favorecer tudo o que possa propagar esses sentimentos (religiosos), mesmo que se trate de algo que considerem ser um erro”.

Outro ponto destacado nas obras de Maquiavel é que o mesmo entende que a natureza humana não é má, não é determinadora da história em direção a um fim, pois não furta a liberdade da ação humana. Bignotto (1991, 173) afirma que a natureza humana é instável e manifesta “sede de novidades”, o que justifica a existência de “indeterminação no campo político”, e a procura, em muitos momentos, por “vias obscuras da construção social pela ação contínua dos homens na cidade”.

Essa liberdade existente na natureza humana se dá por meio da ação política. Para Maquiavel, tal ação política é o exercício da virtude (“virtù” em italiano), ou seja, é a capacidade de agir no interesse do bem público, sacrificando quaisquer interesses pessoais em proveito do público. Tais atos podem ser considerados como re-fundadores, pois tem por escopo conservar e fortalecer a república já fundada. Como maiores exemplos de fundadores de uma cidade ou religião, Maquiavel (2000, VI) apresenta as figuras de Moisés (judaísmo), Ciro (Pérsia), Romulo (Roma) e Teseu (Atenas).

Para o filósofo, os fundadores citados agiram, cada um em seus respectivos períodos, porque a corrupção se manifestava. A corrupção deve ser entendida como o perecimento de uma forma política, com o subjugo de uma cidade por outro povo. Nesse sentindo, a fundação ou re-fundação se fazia necessária. Arendt (2003, p. 181) afirma que Maquiavel, “embora nunca tenha usado a palavra, foi o primeiro a conceber uma revolução” (grifo nosso).

A “revolução” causada pelos fundadores ocorreu porque os mesmos encontravam-se num contexto de servidão. A liberdade existente na natureza humana de tais fundadores, movidos pela virtude (capacidade de agir no interesse do bem público), fez com que  agissem visando o fim da corrupção e a criação de uma forma de governo que suportasse a ação do tempo. 



Para se controlar a possibilidade de corrupção pelo tempo se faz necessário estabelecer meios, podendo sê-los as leis, a religião ou outras instituições. Tais meios possibilitam impor limites à corrupção, à natureza humana que anseia se modificar constantemente, e à fortuna – entendida como as circunstâncias que escapam do controle humano, o acaso, a sorte (Maquiavel, 1973, VIII, XXV). No capítulo XXV de O Príncipe, o filósofo julga “feliz aquele que combina o seu modo de proceder com as particularidades dos tempos, e infeliz o que faz discordar dos tempos a sua maneira de proceder”.

Possuir virtude nesse contexto, portanto, é ter a capacidade de agir conforme as circunstâncias, evitando o vício político de se guiar por virtudes e por conceitos morais cristãos que não acompanhem as variações do tempo e das circunstâncias. Segundo Silva Filho (2011, p. 67), Maquiavel entendia que para manutenção da República, se for útil, deve o governante recorrer à mesquinhez, à deslealdade, crueldade, mentira, ludíbrio, em detrimento de uma generosidade, fidelidade, compaixão e verdade que possa levá-la à ruína.

Pode-se concluir que o bordão “os fins justificam os meios” reflete o espírito maquiaveliano na medida em que se tem por escopo o bem comum, o que difere totalmente da conotação dada por expressões como “maquiavélico”, ou seja, ter a ação uma forma desonesta, inescrupulosa, perversa, com fito em interesses próprios. Pelo contrário, toda a construção do pensamento político moderno de Maquiavel visava interesses públicos.

É Maquiavel o primeiro filosofo que inverte a relação de subordinação entre a teoria e a prática, pois confere autonomia à política, sendo esta superior hierárquica a qualquer outra ciência ou disciplina, justamente por ter essa uma utilidade que vai além da contemplação, ou seja, por ser instrumento do alcance de finalidades públicas, onde a existência da virtude se faz necessária para superar corrupções e fortunas, e assim, manter-se a república e  a promoção do bem comum.


BIBLIOGRAFIA:

ARENDT, H. “Que é Autoridade?” In: _______. Entre o passado e o futuro. Trad. Barbosa, M. W. São Paulo: Perspectiva, 2003.

BIGNOTO, N. Maquiavel republicano. São Paulo: Edições Loyola, 1991.

MAQUIAVEL, N. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: Editora UNB, 2000, Livro I.

____________. O Príncipe. Col. Pensadores. São Paulo: Abril, 1973.

SILVA FILHO, Luiz Marcos da. Nota sobre teoria e prática em Maquiavel. In: Sobre a relação entre teoria e prática na história da filosofia: Platão, Aristóteles, Agostinho e Maquiavel. Lavras: UFLA, 2011.

OBSERVAÇÃO:

1.  Este texto é um resumo que produzi com o material de aula da disciplina “Introdução à Filosofia” da Graduação em Licenciatura para Filosofia da UFLA – Universidade Federal de Lavras EaD Campus Governador Valadares. Produzido em 16/12/2011.

2. Esta é a última parte da série sobre a relação entre a teoria e prática na história da filosofia. Na primeira parte, apresentamos uma análise desses conceitos, e posteriormente, as perspectivas a respeito de Aristóteles (segunda parte), Platão (terceira parte) e Agostinho (quarta parte).

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