sexta-feira, 30 de novembro de 2012

HISTÓRIA DA FILOSOFIA MEDIEVAL I - "A VIDA FELIZ" DE AGOSTINHO





No estudo da 'História da Filosofia Medieval I' temos a obra de "A Vida Feliz" de Santo Agostinho como objeto de análise. O autor, mesmo não sendo propriamente um filósofo medieval (considera-se que Agostinho seja uma filósofo antigo, mais precisamente da Antiguidade Tardia), é tratado como um dos principais pensadores da Idade Média porque a Filosofia Medieval Ocidental apresenta enorme influência sua, sobretudo como fonte de reflexão filosófica cristã. 

Até Tomás de Aquino, no século XIII, Agostinho é o autor de maior influência na Idade Média porque, dentre outras razões, concebeu o cristianismo não só como uma religião, mas também como filosofia, mais precisamente, como a verdadeira filosofia.





SOBRE O DIÁLOGO "A VIDA FELIZ" DE AGOSTINHO

A obra agostiniana ora analisada é um registro de fatos reais (já que o filósofo possuía um estenógrafo), uma vez que tal colóquio realmente ocorrera em Cassicíaco (norte da Itália), numa chácara cedida por seu amigo Verecundo, homem da nobreza romana, entre os dias 13 a 15 de novembro do ano 386 d.C, em ocasião do 32° aniversário de Agostinho.

Neste local, o filósofo reuniu seu irmão Navígio, seu filho Adeodato, sua mãe Monica, seus amigos Alípio, Licencio e Trigésio e seus dois primos Lastidiano e Rústico, com o intuito de oferecer-lhes um banquete para o corpo, mas também para a alma, pois nesse contexto estavam todos livres para se dedicarem também à contemplação.





O PRIMEIRO DIA DO DIÁLOGO:

Nesse primeiro momento do diálogo “A Vida Feliz” (§§ 7-9 referentes ao primeiro dos três dias – e conseqüentemente três capítulos) Agostinho estava em duvida sobre a natureza da alma. Ele começa sua constatação com a inquirição sobre a clareza de todos os presentes acerca do entendimento de que o homem é composto de corpo e alma.

Todos concordam, exceto Navígio, que duvidava se poderia existir alguma coisa a mais do que isso. Agostinho entendeu-lhe conclui, em conjunto com todos os presentes, que todos estavam em consenso de que existia um corpo e uma alma. Ressalta-se que no início do diálogo, Agostinho referia-se à “vida” e posterior utilizou-se o termo “alma”. Porém, como explica Filho & Gunella (2012, p. 37), o fato de viver, numa análise etimológica, significa possuir uma alma.

Isto posto, passaram a discutir sobre para qual dos dois (corpo e alma) o ser humano deseja o alimento. Após esclarecimentos ao amigo Trigésio, todos concluíram que o alimento é para o corpo, haja vista que se for suprimido o alimento, o corpo definha. Com a aprovação de todos que o alimento se refere ao desenvolvimento e fortalecimento do corpo, a investigação destinou-se à alimentação própria para a alma.

Agostinho pergunta se o alimento para alma não seria a ciência (ou conhecimento), ao que sua mãe, Mônica, de forma veemente respondeu que “não existe outro alimento para a alma que seja o conhecimento das coisas e a ciência”, pois, “é de tais alimentos, isto é, das próprias especulações e pensamentos, que a alma se alimenta” (8). Esse posicionamento de Mônica alvoroçou o ambiente e Agostinho surgiu com o posicionamento de que “os homens sábios possuem o espírito mais pleno e mais livre do que os ignorantes” (8).

Disto decorreu o entendimento de que os espíritos desprovidos de cultura e instrução são como espíritos em jejum e famintos, os quais Trigésio acrescentou definindo-os como “cheios de vícios e maldades”, ao passo que Agostinho corroborou, por entender que esse espírito ignorante, por inanição, está “impregnado de doenças provenientes de suas carências”.

Agostinho então afirmou que a alma que não se alimenta do conhecimento tem uma decomposição maligna, que é “a mãe de todos os vícios”, identificando-se como uma perversão moral, uma vez que vem a ser nada, vazia. Ela – alma – é improdutiva, pois se escoa, decompõe-se, dissolve-se e não pára de se deteriorar e perder-se. Falta-lhe identidade, pois é imutável e perdida.

Já o seu oposto, ou seja, uma alma que se alimenta, possui uma virtude, uma identidade, cujo elemento mais importante se denomina moderação, temperança ou frugalidade, o que significa que tem a alma plena, nutrida, preenchida de conhecimento e que se mantém, perdura-se, não se altera e sempre fica semelhante a si mesmo.

Dessa forma, a investigação da alma e de seu alimento tem como critério a imutabilidade (Filho & Gunella, 2012, p. 40), pois o filósofo elaborou um conceito de alma imaterial, que se alimenta também de forma imaterial, e principalmente, imutável.


O bem da alma:

A obra agostiniana ora analisada é um registro de fatos reais, uma vez que tal colóquio realmente ocorrera em Cassicíaco (norte da Itália), numa chácara cedida por seu amigo Verecundo, homem da nobreza romana, entre os dias 13 a 15 de novembro do ano 386 d.C, no 32° aniversário de Agostinho. Lá, o filósofo reuniu seu irmão Navígio, seu filho Adeodato, sua mãe Monica, seus amigos Alípio, Licencio e Trigésio e seus dois primos Lastidiano e Rústico, com o intuito de oferecer-lhes um banquete para o corpo, mas também para a alma, pois nesse contexto estavam todos livres para se dedicarem também à contemplação.

No primeiro momento do diálogo “A Vida Feliz”, notadamente nos capítulos 7 a 9, Agostinho estava em duvida sobre a natureza da alma, concluindo, por meio do desenvolvimento do diálogo, que a alma está nutrida quando possui ciência, virtude e ser. Sua relação com o segundo momento do diálogo, os capítulos 10 a 12, ocorre quando se exige a posse pela alma do bem imutável, entendido como Deus, como a origem da felicidade.

Essa relação entre alimento da alma e felicidade começa quando os interlocutores respondem a pergunta de Agostinho: “Queremos todos ser felizes?”, onde após todos responderem coletivamente de forma positiva, há uma contra-pergunta agostiniana: “Quem não tem o que quer é feliz?” (10), ao passo que todos responderam que não, pois entenderam que se não se tem o que se quer, não se é feliz.

Agostinho, na preocupação de que não se ocorresse uma aporia, inverteu a pergunta: “então, quem tem o que quer será feliz?” (10), tendo sua mãe, Mônica, respondido – ao compreender o objetivo de seu filho ao inverter a pergunta – que “sim, se for o bem que ele apetece e possui, será feliz. Mas, se forem coisas más, ainda que as possua, será desgraçado”.

O filósofo conclui essa etapa do colóquio afirmando que sua mãe chegara ao cume da Filosofia, por ter ido de encontro com a obra de Cícero, intitulada Hortênsio, a responsável por fazê-lo despertar à Filosofia, e que demonstrava que “não basta possuir qualquer coisa que se deseje para ser feliz” (FILHO & GUNELLA 2012, p. 43).

Posto isto, e após advertir Licêncio, que se precipitou questionando o que era necessário para ser feliz e quais as coisas que se pode desejar para chegar à felicidade, Agostinho continuou seu itinerário esclarecendo que para todos estava claro que ninguém poderia ser feliz sem possuir o que deseja e, de igual forma, não basta aos que já possuem ter o ambicionado para serem felizes, já que a única coisa que pode ser ambicionada é o bem (10).

Para não cair em aporia, Agostinho retoma a discussão com as perguntas: “Admitis ser infeliz o homem que não é feliz?” e “Logo é infeliz quem não possui o que deseja”? (11) após ter obtido resposta positiva de todos à primeira questão.

Passa-se então a discutirem “o que o homem precisa conseguir para ser feliz?” (11), qual o bem que a alma necessita possuir para se ter uma vida feliz, ou seja, o que convém ser desejado.

Entendendo que para ser feliz é preciso possuir um bem sem o qual a felicidade não existe, esse bem necessita, portanto, ser um “bem permanente, livre das variações da sorte e das vicissitudes da vida” (11), não podendo “ser mutável, não pode deixar de existir, perecer”, pois, “se a fonte de minha felicidade desaparecer, a felicidade mesma desaparece” (FILHO & GUNELLA, p. 44). Aplicando o critério de imutabilidade, com exceção de Trigésio, todos concordaram com tal critério, para que se chegue à vida feliz. 

Trigésio excepcionou-se porque afirmou a existência de homens afortunados que possuem em abundancia bens frágeis e sujeitos ao acaso, mas, não obstante, conseguem viver de forma agradável. Agostinho refutou-o, afirmando que a felicidade não pode existir em conjunto com o temor e o sofrimento da perda, ao passo que Mônica ratificou o argumento de seu filho, ao afirmar que “ainda que alguém tivesse a certeza de não perder tais bens frágeis, contudo, nunca viria a se contentar com o que já possui. Portanto, a pessoa seria infeliz pelo fato de querer sempre mais”, o que na perspectiva de FILHO & GUNELLA (p. 45) se resume em duas razões: a causa do medo, que não existe quando se tem a felicidade absoluta, e o traço de insaciabilidade das coisas relativas.

Ainda utilizando o critério de imutabilidade do bem que propõe a felicidade por meio dos próprios bens relativos, Agostinho os inquiriu sobre a possibilidade de alguém possuir “bens em abundância, rodeado de benefícios sem conta, supondo que pusesse limite/medida a seus desejos e vivesse satisfeito com o que possuísse, no gozo honesto e agradável desses bens” (11), e se assim poderia ser ele feliz.

Mônica afirmou que poderia ser sim feliz, porém “não seriam essas coisas que o tornariam feliz, mas a moderação de seu espírito” (11), trazendo a análise da felicidade para análise da virtude da moderação, tal como foi com o alimento da alma.

Nesse sentido, FILHO & GUNELLA (2012) afirmam:



“O que pode tornar o homem feliz não é a posse de um bem exterior a ele, não é a posse de algo corpóreo, mas de algo incorpóreo, da mesma natureza da alma. A virtude, dessa maneira, é apresentada como bem imutável. Se uma alma é virtuosa, assim será sempre: em toda e qualquer circunstância agirá com virtude, moderadamente” (2012, p. 46).



O filósofo nesse momento concluiu que “se alguém quiser ser feliz, deverá procurar um bem permanente, que não lhe possa ser retirado em algum revés de sorte” (11), e de forma imediata desenvolve mais ainda seu raciocínio ao concluir que “é feliz quem possui a Deus” (11), tendo como premissas ‘ser feliz quem possui um bem imutável’ e a ‘imutabilidade de Deus’. Portanto, Deus é o bem que a alma precisa possuir para se ter uma vida feliz. 

Finalizando esse segundo momento do diálogo, Agostinho apresentou um novo questionamento: “quem entre os homens possui a Deus?” (12). Como maneiras da alma possuir o bem que a alma necessita (ou seja, Deus), de Licêncio obteve a resposta “quem vive bem” (12), de Trigésio “quem faz o que Deus quer que se faça” (12), e de seu filho Adeodato, obteve “quem não tem em si o espírito imundo” (12). 

Após saber o que cada um dos presentes pensava a respeito, Agostinho concluiu que responder essa pergunta é “a matéria mais elevada sobre a qual” se deve filosofar na “busca da felicidade” (FILHO & GUNELLA, p. 47). Porém, o filósofo deixou essa investigação para o dia seguinte, haja vista que já estavam prontos para se fartarem dos pratos servidos na ocasião. 


O SEGUNDO DIA DO DIÁLOGO

Na continuidade da obra "A Vida Feliz", em seu terceiro capítulo, intitulado "O segundo dia", Agostinho retoma a metáfora alimentícia e as conclusões obtidas no dia anterior, tendo certeza de que todos ali novamente presentes entendiam que a discussão nesse segundo momento seria mais breve. Igualmente, que todos os presentes desconheciam o que estaria preparado para esse segundo momento, ao afirmar:


"Desconheço, entretanto, o que vos está preparado para hoje, tanto quanto vós. Pois existe Outro que não cessa de oferecer-se a todos os melhores manjares, sobretudo os deste gênero de que vamos nos servir neste momento". (17)

Segundo explicam FILHO & GUNELLA, Deus caracterizado na figura do ‘Outro’, é de suma importância haja vista que se trata “da afirmação de uma alteridade com o ser humano, cuja distância parece poder ser suprimida, na medida em que o homem deve possuir a Deus”. (2012, p. 55)

Salientam, porém, que essa caracterização não se trata de uma identificação do homem com Deus, de uma deificação, “pois o fundamento do homem se encontra em Outro, de forma que ele nunca poderá bastar-se e fundamentar-se a si mesmo”. (2012, p. 55)

Na continuidade de sua fala, Agostinho afirma ser a própria humanidade a ser abster de tomar desses 'manjares', seja "por fraqueza, por fastio, seja por excesso de ocupações" (17). 

Nesse ponto, FILHO & GUNELLA afirmam que mesmo havendo a possibilidade do homem buscar a Deus após ser suscitado por um mestre, o mesmo não é autossuficente, pois “não depende apenas de si para nutrir a alma e encontrar a felicidade, nem é capaz de produzir o próprio alimento anímico, mas é dependente da dispensação do Outro”. (2012, p. 57)

Isto posto, Agostinho reconstrói a discussão que ficara suspensa no dia anterior, qual seja, somente é feliz quem possui a Deus e que na análise de quem possui a Deus foram apontadas três respostas:

1 - Possui a Deus quem faz o que Deus quer. 
2 - Possui a Deus quem vive bem.
3 - Possui a Deus quem não tem em si o espírito denominado impuro.

A partir disso o filósofo de Hipona examina cada uma delas para verificar se seus interlocutores não teriam dito o mesmo, porém com outras palavras. Na análise dos dois primeiros pareceres Agostinho vê a existência de uma concordância entre eles, pois, como afirmou, “vemos que quem vive bem faz a vontade de Deus; e quem faz o que Deus quer vive bem” (18).

Com a anuência de todos, Agostinho parte para o terceiro parecer, entendendo que antes de analisá-lo é preciso entender o significado de ‘espírito imundo’, ou seja, se este é aquele “espírito que, de fora, invade a alma, perturbando os sentidos, a ponto de provocar na pessoa uma espécie de loucura”, sendo necessário o exorcismo para expulsá-lo, ou se este se trata de “toda alma impura, isto é, manchada de vícios e erros”. (18).

Adeodato, filho de Agostinho e propositor desse terceiro parecer, logo respondeu afirmando que “está isento de espírito imundo aquele que vive castamente”. (18). Porém, o significado de ‘castidade’ também é ambíguo, pois pode significar tanto “aquele que não comete nenhum pecado” como “quem se limita a abster-se de relações carnais ilícitas”.(18).

Assim, a conclusão que chegam é que o pecado incide “em qualquer ser humano que procure a felicidade em bens relativos, esquecendo-se de que a verdadeira beatitude não reside em objeto suscetível à mudança, mas em um ‘bem permanente’ e imutável”. (FILHO & GUNELLA, 2012, p. 60). Nas palavras de Agostinho, a pessoa casta é aquele que tem “os olhos voltados para Deus”, além de “não se prender a nada além dele só” (18).

A partir do entendimento de que a pessoa casta é aquela que possui a alma inteiramente voltada para Deus, é possível incluir o parecer de Adeodato nas duas primeiras opiniões, pois “viver bem” e “fazer o que agrada a Deus” são a mesma coisa, assim como não é possível ser livre do espírito imundo se não se cumprir a vontade de Deus e viver bem.

Assim, todos os presentes concordaram que todos três pareceres coincidem em uma só opinião.




A posse de Deus:

O diálogo A Vida Feliz, de Agostinho de Hipona, na primeira parte de seu capítulo III, depara-se com a conclusão de que os três pareceres dados acerca de quem possui a Deus podem ser resumidos numa única opinião, a saber, que viver bem e fazer o que agrada a Deus são a mesma coisa, assim como não é possível ser livre da imundice do espírito – e, portanto casto – sem cumprir a vontade de Deus e viver bem. Já na segunda parte do referido capítulo, notadamente no trecho composto pelos parágrafos de número 19 a 22, que o diálogo caminha para uma explicitação da equivocidade da expressão ‘posse de Deus’, bem como da problematização entre os termos ‘possuir’, ‘encontrar’ e ‘procurar’ a Deus.

A equivocidade da expressão ‘posse de Deus’ se dá quando Agostinho aponta para uma falácia em que todos incorreram, pois as três opiniões dadas não respondem a pergunta “quem entre os homens possui a Deus?” (II, 12) e sim, quem procura a Deus.

Para ordenar a discussão nesse sentido, Agostinho procede a um exercício filosófico com uma sucessão de perguntas: (1) “Deus quer que o homem O procure?”, onde todos concordaram; (2) “Podemos dizer que quem busca a Deus vive mal?”, em que todos responderam negativamente; (3) “Pode o espírito impuro procurar a Deus?”; e tendo a negativa também de todos nessa última inquirição, Agostinho concluiu que:

“Se, pois, possui a Deus aquele que busca a Deus, faz a vontade de Deus, vive bem e está livre do espírito impuro; e, entretanto, por outro lado, quem está a procura de Deus ainda não o possui; segue-se que quem vive bem faz o que Deus quer e não possui o espírito impuro, só por aí, não pode ser considerado como alguém que possua a Deus” (19).


Assim, ao concordarem que o desejo de Deus é que o homem o procure, a expressão ‘posse de Deus’ perdeu seu sentido, haja vista que se alguém procura algo, é porque não possui aquilo que é procurado.

Mônica então propõe um novo sentido para a ‘posse de Deus’. Baseada no entendimento de que quem procura a Deus já o possui de algum modo, pois “não há ninguém que não possua a Deus” (19), especifica as modalidades dessa posse, a saber: “aquele que vive bem possui a Deus como um amigo benévolo, e quem vive mal, como alguém que lhe é distante”(19).

Agostinho alerta nesse momento que se for verdade que todos O possuem, fizeram “mal ontem em concordar que é feliz todo aquele que possui a Deus (...), pois, na verdade, vemos que nem todos são felizes”. (19). Navígio, por sua vez, refuta o sentido dado por Mônica, pois, se aceitar que “é feliz quem possui a Deus como benévolo”, há de se dizer que os acadêmicos são felizes.

A esse respeito, FILHO & GUNELLA (2012, p. 63) afirmam que “se eles (os acadêmicos) estão em busca da verdade, e se a verdade, ainda que eles não admitam, é Deus, Deus é benévolo com eles, pois Deus não pode ser malévolo com que o procura” (destaque nosso) e que a discussão nesse ponto é sobre o critério central do diálogo, a saber, a imutabilidade. Noutras palavras, seria “a possibilidade de alguém que não possui um bem imutável ser feliz”.

A conversa prossegue uma vez que ainda não entendiam a inconsistência da expressão “é feliz quem possui a Deus como propício” (19), até que se deparou com a necessidade de se repensar a problemática sobre uma outra modalidade de se possuir a Deus.

Segundo FILHO & GUNELLA (2012) o problema que todos os presentes encontraram era justamente que “se Deus não pode ser propício aos acadêmicos, seria Deus malévolo com eles. Se sim, então Deus seria malévolo com quem procura a verdade, o que seria um absurdo”. Além de que teria surgido uma terceira questão: “como aqueles que não possuem a Deus nem favorável nem hostil, possuiriam a Deus?” (p. 63-64).

Nesse ponto, ao Agostinho (21) inquirir se valia mais possuir a Deus ou não estar sem ele, Mônica elabora uma nova forma de relação entre o homem e Deus, a saber:


“... quem vive bem possui a Deus, e de modo propício. Quem vive mal possui a Deus, mas como distante. E quem quer que esteja à procura, sem todavia o ter encontrado ainda, não possui a Deus nem propício nem molesto. Contudo, não está sem Deus”.


Assim, a mãe do filósofo de Hipona afirma ser possível ‘possuir a Deus’ de dois modos: propício ou molesto/distante. O primeiro significa “não só procurar por Deus, mas ainda viver bem ao longo da procura, o que se dá com o auxílio de Deus”, e o segundo, “não desfrutar de auxilio algum de Deus, inclusive porque ele é malévolo (...) com quem vive mal, vive imerso em vícios e não o procura”. Por sua vez, os que não possuem a Deus em nenhum dos dois modos, mas o procuram, não estão sem Deus, porém não vivem bem. (FILHO & GUNELLA, 2012, p. 64). 

Nesse momento Agostinho aponta para a incompatibilidade de tentar vincular ‘posse’ e ‘procura’ para definir quem seja feliz, pois considerando ser Deus favorável a quem o procura, e se admitisse que é feliz quem Deus for favorável, deve-se concluir que “quem ainda não possui o que deseja é feliz” (21), contrariando o entendimento do dia anterior, onde todos concordaram que “ninguém pode ser feliz, sem possuir o que deseja” (II, 10).

Assim, a referida problematização a respeito da ‘posse de Deus’ passa a ter uma conotação distinta de ‘procurar a Deus’, devendo-se analisar a relação entre ‘encontrar’ e ‘procurar’, pois assim é possível conceber que “nem todo o que possui Deus favorável é feliz” (21), uma vez que nem todo que já o possui o encontrou.

Agostinho então propõe uma nova tripartição da relação do homem com Deus, a saber:


“Todo o que encontrou a Deus e o tem benévolo é feliz. Todo o que ainda busca a Deus tem-no benévolo, mas ainda não é feliz. E, enfim, todo o que se afasta de Deus, por seus vícios e pecados, não somente não é feliz, mas sequer goza da benevolência de Deus” (21).



Pode-se concluir que nessa nova proposta do filósofo, aquele “que encontrou a Deus benévolo e é feliz” tem sua posse vinculada ao termo ‘encontrar’. Já aquele que “ainda busca a Deus tem-no benévolo, mas ainda não é feliz” já tem sua posse vinculada ao verbo ‘procurar’. Ambos são felizes justamente porque não pode ser feliz a pessoa que não possui o que deseja. Por sua vez, aqueles que se afastaram de Deus não contam com sua benevolência, pois não o encontraram e nem o procuraram.

Com a concordância de todos, Agostinho também conclui que assim, o entendimento anterior de que “todo aquele que não é feliz é infeliz” é também falso, passando a entender como infeliz “a pessoa que possuindo a Deus de modo benévolo, pelo fato mesmo de estar em busca de Deus, não é feliz” (22).

Não obstante, o diálogo nesse segundo dia deixa em suspenso a possibilidade de existir um estado de intermediaridade entre a felicidade e a infelicidade, tendo que ulteriormente analisarem “se é verdade que seja infeliz quem se encontra em indigência” que também seja “verdade que todo infeliz seja indigente” (22), pois caso a reflexão seja positiva, “a infelicidade consiste tão-somente na carência e na indigência” (22), o que significaria que a pessoa que procura por Deus, que possui a Deus benévolo, na realidade não o possuiria e assim seria indigente e, portanto, infeliz.







O TERCEIRO DIA DO DIÁLOGO:

Na continuidade da obra "A Vida Feliz", no Capítulo IV – “A Felicidade é Plenitude Espiritual”, já relatando o terceiro dia do diálogo, Agostinho e seus convidados vão à um campo e lá retomam a discussão do ponto que tinham parado no dia anterior, ou seja, na possibilidade de serem todos os infelizes necessitados de algo, carentes, no sentido oposto da noção de possuir.

Para tanto Agostinho tenta compreender em que consiste a infelicidade e a felicidade, tendo como método a indigência, pois caso o resultado fosse que todos os infelizes são carentes de algo, seria possível descobrir quem é feliz, ou seja, seria “feliz quem não sofre necessidade” (23).

Trigésio, amparado na conclusão do dia anterior que de não haveria um meio-termo entre felicidade e infelicidade tenta concluir que feliz é aquela pessoa que não está na indigência. Ocorre que no dia anterior viu-se que há um grupo de pessoas, que não são felizes, e que procuram a Deus, porém ainda não o encontraram, mas que essas pessoas já o possuem de algum modo. Se já o possuem, não se pode afirmar que são indigentes, contrariando dessa forma, Trigésio.

Agostinho então procura demonstrar que a conclusão de Trigésio não ampara a suposta identidade entre infelicidade e indigência, passando a analisar o meio-termo entre infelicidade e felicidade, para vê se pode concluir que o feliz é aquele não está na indigência.

Para tanto, Agostinho que afirmou que ‘estar na indigência’ como análogo ‘à estar enterrado há um ano’ não possibilita a seqüência ‘quem não está na indigência é feliz’ como análogo de ‘não estar vivo alguém que já fora enterrado há mais de um ano’.

Após essa analogia e diante de uma compreensão vaga, concluíram que precisavam examinar melhor o conceito de indigência.


A indigência:

O diálogo
A Vida Feliz, de Agostinho de Hipona, na primeira parte do Colóquio do Terceiro Dia (§§ 23-29) propõe-se à questão da identificação entre a indigência e a infelicidade. Para tanto, utilizam-se de uma concepção estóica para compreender quem é a pessoa sábia, sendo esta alguém que não está em busca da felicidade, pois já a encontrou. Em razão disto, deve-se analisar tal sabedoria pela perspectiva da existência de uma possível indigência.

Nessa análise de suas possíveis carências, a necessidade corporal não se justifica, pois “estas coisas não se fazem sentir na alma – sede da vida feliz” (25). Já na análise relativa à alma, o traço da sabedoria é a virtude da fortaleza, que é a tranqüilidade sob a qual a alma repousa, a ponto de não se abater com a privação de bens exteriores, sendo “tolice suportar o que se pode evitar” (25) razão pela qual o sábio tem critérios racionais de possibilidade e conveniência.

Justamente por isto, Agostinho (25) passa a analise da concepção de felicidade ou de infelicidade para uma dimensão interior, pois ser sábio é também “evitar certos males”, e mesmo “diante do insucesso ele não se tornará infeliz, pois reconhecerá que aquilo que não pode ser evitado se refere ao que ao homem não deve querer evitar” (FILHO & GUNELLA, 2012, p. 75), indo de encontro com a máxima de Terêncio: “já que as coisas não podem ser tal como queres, deseja apenas aquilo que for razoável” (25).

A sapiência é justamente saber o deve querer e o que não se deve querer, uma vez que “tudo o que ele faz será conforme as prescrições da virtude e da divina lei da sabedoria”, já que a sabedoria reside em bens imutáveis, que nunca “poderão ser arrebatados” (25). Nesse ponto, e visando contrapor o homem sábio do não sábio, o diálogo passa a analisar a figura de Orata, um personagem que representa o sentido material da indigência.

Abastado, via-se inseguro com o temor da perda de toda a sua riqueza, não podendo assim, ser feliz. Ressalta-se que mesmo infeliz em razão de sua insegurança, Orata não se encontrava em indigência. Daí concluir-se que a felicidade coincide com a ausência da indigência, e de igual forma, que a infelicidade nem sempre coincide com indigência, pois a indigência nesse caso, material, não existia.

Por essa razão, Mônica aponta para um entendimento de indigência em outra esfera, ou seja, espiritual. Nesta, a indigência “é a privação da sabedoria”, sendo considerada “a maior e mais deplorável indigência” (27). Noutras palavras, a indigência seria o oposto da sabedoria, ou seja, a estupidez, a estultícia.

Com essa nova perspectiva, pode-se identificar a indigência com a infelicidade, bem como a estupidez com a infelicidade, sendo possível afirma que “todo insensato é infeliz, do mesmo modo todo infeliz é insensato” (28). Na lição de FILHO & GUNELLA (2012), essa conclusão pode ser compreendida com o seguinte raciocínio: - A indigência (carência de sabedoria) é estultícia;/ - Toda estultícia é uma infelicidade; / - Logo, toda infelicidade é uma indigência. (p. 78).

Para fazer com que Trigésio compreendesse que a identificação de indigência e infelicidade se torna necessária a partir da compreensão de que a indigência é a falta de sabedoria, e o seu oposto é a estupidez, Agostinho ainda utiliza-se de exemplos como a privação da luz e a questão da nudez, onde, analogamente, a estultícia era compreendida como o ‘não possuir’ a sabedoria, podendo finalizar essa parte do diálogo afirmando que “todo insensato é infeliz e todo infeliz insensato, assim também todo indigente é infeliz e todo infeliz indigente” (29).


A análise etimológica da indigência:


Nessa segunda metade do texto referente ao terceiro dia do colóquio empreendido por Agostinho com seus interlocutores, passa-se a uma análise etimológica dos conceitos associados à compreensão de indigência. Desta forma, a estultícia se refere à alma que apresenta todos os vícios que existem, pois o homem estulto é considerado como aquele incapaz de virtudes, porque não possui sabedoria. A nequícia significa a malícia, a maldade, é considerada como a mãe de todos os vícios, é a esterilidade, é o ‘não ser’. Juntamente com a indigência, a estultícia e a nequícia, formam uma tríade cuja relação entre elas é recíproca, ou seja, uma não existe sem a outra. O oposto da nequícia é a frugalidade, ou seja, a virtude da alma fecunda, que produz frutos, é o ‘ser’. Já o oposto da estultícia é a sabedoria. Ser estulto – e também indigente – é, portanto, ser néscio, é ser privado “de ser”, de ter sabedoria. 

Essa dicotomia entre malícia e frugalidade possibilita a compreensão do contrário da indigência como sendo a plenitude e a opulência. Acima da compreensão de riqueza (vocábulo simplório para se opor à indigência) é a plenitude o oposto da indigência, pois dessa forma, atrela-se seu significado ao conceito de frugalidade, na medida em que se entende essa frugalidade como a plenitude da alma, como a mãe de todas as virtudes, como a moderação e temperança, como a medida certa, nem abundante e nem faltosa. Nesse sentido, a opulência também pode ser considerada o contrário da indigência, na medida em que é um auxilio para se encontrar a medida, para que nada seja em excesso. 

Quando se analisa a relação de contrariedade entre indigência e frugalidade, estabelece-se uma relação de deslocamento e ampliação do sentido lógico (entendido como conhecimento) da sabedoria, para um sentido físico, (enquanto ontologia), e moral. Ao se definir a sabedoria como a medida da alma, tem-se que a sabedoria é o contrário da estultícia, da indigência e da carência. A sabedoria como a medida da alma é a plenitude. E a plenitude se dá com o tratamento das perturbações da alma e com a conservação de seu equilíbrio para não se dispersar em excessos ou se encolher abaixo de sua plenitude.


Essa sabedoria se dá com o encontro da medida da alma não somente no plano moral, mas também em seus sentidos físico e lógico. Tal qual a tríade negativa (indigência, ignorância, nequícia) e a positiva (plenitude, sabedoria, frugalidade), o encontro da medida da alma também passa pelo conhecimento dos fundamentos que levam à sabedoria, a saber: a) o físico – compreendido como a medida certa em si que a alma precisa, ou seja, através do encontro com o Pai, entendido como Deus, o bem imutável; b) o lógico – entendido como a Verdade, através do Filho, na figura Jesus, que também é Deus e, portanto, imutável; e c) o moral - a terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo, elemento no qual a dinâmica de Deus com a criação se completa ao se revelar ao homem, que em sua passividade somente se entrega à transcendência e a presença de Deus no mundo, na alma racional dentro de si, sendo assim, capaz de conduzi-lo à Vida Feliz.




A medida da alma como possuir a Deus:

O diálogo A Vida Feliz, de Agostinho de Hipona, em sua parte final propõe-se a estabelecer a compreensão da ‘medida da alma’, bem como que sua posse significa ter a ‘posse de Deus’.

Agostinho, após analisar etimologicamente alguns conceitos acerca da indigência e de seus opostos, desenvolve a compreensão acerca da relação de reciprocidade entre física, lógica e moral (§§ 32-33), pois com a ampliação do conceito de sabedoria enquanto a medida da alma foi possível conceber um sentido físico (por uma análise ontológica) e moral para tal conceituação.

A sabedoria é tida como a ‘medida da alma’ haja vista que ela é o oposto da estultícia, da indigência. Ser estulto e indigente é carecer de sabedoria. Possuir a sabedoria é ter plenitude, é possuir a medida certa, nem em excesso, nem em falta. É, portanto, ter a medida da alma. Ser sábio e ter a medida da alma, segundo Agostinho, é ter a moderação da alma, ou seja, é ter “aquilo pelo que alma se conserva em equilíbrio, de modo a não dispensar em excessos ou encolher-se abaixo de sua plenitude” (33).

Não ter essa medida faz com que a alma se entregue às perturbações: luxúria, ambições, orgulhos, baixezas, temores, tristezas, cobiças e outros excessos do gênero. Quem não possui essa vida moderada é “miserável, porque, ignorante e indigente, é incapaz de viver conforme a sua natureza e o bem imutável que deve possuir”. (FILHO & GUNELLA, 2012, p. 88).

Para se encontrar tal medida é preciso descobrir a sabedoria, contemplá-la, aderi-la à alma e se converter das ‘aparências enganosas’ para Deus (§ 33). É nesse sentido que possuir a medida da alma é possuir a Deus, uma vez que se passa do domínio da lógica (do conhecimento) para os domínios da moral e da física, pois a alma guarda relação com esses três domínios, para que seja sábia (lógica), virtuosa (moral) e plena de ser (ontológica).

O bem imutável que é desejado pelo homem para se alcançar a vida feliz é superior a ele e tem o nome de Deus. Todo o percurso do colóquio, ora estudado, leva à compreensão de que a inconstância é própria do ser humano e que ele depende de algo imutável, ou seja, que o homem precisa ‘possuir a Deus’, pois este é a Sabedoria.

Assim, Agostinho nos §§ 34-36 estabelece a possibilidade de a alma moderada possuir a Deus através da fé na Trindade. Desembarcando numa filosofia religiosa, e realizando referências bíblicas (34), Agostinho propõe que a Sabedoria é o Filho de Deus, na figura de Jesus Cristo, e que tal Sabedoria também é a Verdade, ou seja, Deus, bem como que a Verdade seja também a Medida, pois ao sábio não se pode faltar nada que é próprio da Sabedoria.

Utilizando-se da imutabilidade do bem que a alma deve possuir, tanto a Medida (compreendida na figura de Jesus Cristo), quando a Verdade/Sabedoria (Deus) se apresentam como eternas, não tendo inicio e nem fim, justificando o por que “todo aquele que vier à Suma Medida pela Verdade será feliz. E isso é possuir a Deus na alma, gozar de Deus” (34), é desfrutar Dele.

Sendo o homem a única criatura capaz de possuir seu Criador, ou seja, Deus, Agostinho aparenta, nessa parte do diálogo, dispor dos conceitos de imagem e semelhança, onde todas as criaturas são semelhantes à Deus, sendo porém, somente a alma racional, imagem Dele. Atingir a Deus é, portanto, uma oportunidade ao homem de realizar uma terapia da alma, onde num processo de divindade beatificante, o ser humano pode encontrar-se e viver a Vida Feliz.

Para esse processo de cura da alma doente e desnutrida (II, 8) é preciso que a alma racional se cure ao mesmo tempo no registro da física (ou seja, com o encontro com o Pai Criador  na realização de uma análise ontológica), da lógica (através com encontro com o Filho, sendo a medida da alma) e da moral, sendo esta a terceira pessoa da Trindade, ou seja, o Espírito Santo.

Na concepção agostiniana, cabe a Ele – o Espírito Santo – a irradiação do Pai e do Filho, da Suprema Medida e da Verdade. É a terceira pessoa da Trindade o responsável pelo domínio da moral, em realizar a admoestação do ser humano “para retornar à pátria, a terra firme, para onde ele deve peregrinar e da qual nunca deveria ter se exilado”. (35), cabendo ao homem, nesse processo de ter a Vida Feliz, abrir mão de sua altivez, de seu orgulho, e se entregar, em sua passividade face à transcendência de Deus no mundo, notadamente na alma racional, para se elevar ao estatuto de divindade.

Assim, pode-se concluir que para Agostinho a “Vida Feliz” consiste em conhecer com perfeita piedade o Pai (aquele que nos guia para a verdade), o Filho (aquele de onde a verdade frui), através do Espírito Santo, o responsável por nos unir com a suprema medida. Para tanto, deve o homem, através da Trindade em sua vida, ter um itinerário religioso que passe por três virtudes apontadas pelo Apóstolo Paulo, qual sejam: uma fé sólida, uma viva esperança e uma ardente caridade. (35).


BIBLIOGRAFIA:

AGOSTINHO. A vida feliz. Trad. N. A. Oliveira. Col. Patrística, 11. São Paulo: Paulus, 1998.

FILHO, Luiz Marcos da Silva; GUNELLA, Elis Joyce. História da Filosofia Medieval I. Guia de Estudos: Lavras: UFLA, 2012.


OBSERVAÇÃO:

Este texto é um resumo que produzi com o material de aula de disciplina “História da Filosofia Medieval I” da Graduação em Licenciatura para Filosofia da UFLA – Universidade Federal de Lavras EaD Campus Governador Valadares, produzido em 30/11/2012.


quarta-feira, 21 de novembro de 2012

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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

LÓGICA II - PARTE III: A LÓGICA NA FILOSOFIA DE PEIRCE



Charles Sanders Peirce (Cambridge, Massachusetts, 1839) é filho de Benjamin Peirce (1809-1880), que contribuiu para definir a matemática como a “ciência que tira conclusões necessárias”, onde a matemática pode ser utilizada para estudar a lógica.

Pierce durante muito tempo estudou para saber qual era o melhor lugar para a lógica dentro do quadro das ciências. Ele define a lógica como semiótica, ou seja, como uma teoria geral dos signos. Para tanto, classifica as ciências de acordo com suas finalidades precípuas, não havendo, porem, relação de subordinação entre elas. Trata-se de uma classificação lógica (as mais gerais fornecem princípios para as menos gerais e estas fornecem dados e a informações às gerais) e aberta.

Entendia que ciência é um modo de vida social comunitário, com um propósito único, por meio da cooperação entre os indivíduos. Fazer ciência é, primordial e principalmente, querer corrigir os próprios erros e descobrir a verdade.

Pierce classifica as ciências em:

a) heurísticas – visam descobrir coisas novas;

b) da revisão – visam organizar e sistematizar o conhecimento descoberto;

c) práticas – visam aplicar o conhecimento.

Dentro das ciências heurísticas, ou seja, aquelas que visam descobrir coisas novas, Pierce as apresentam na seguinte classificação:

1) Matemática
1.1. Lógica
1.2. Das séries discretas
1.3. Dos continua e pseudocontinua.

2) Filosofia
2.1. Fenomenologia
2.2. Ciência normativa (estética, ética, lógica)
2.3. Metafísica (geral ou ontológica, psíquica ou religiosa, física).



A primeira ciência seria a matemática, a segunda seria a filosofia. A lógica é um tipo de investigação filosófica especial para Peirce. Faz a classificação em termo de generalidade, de objetivo, de tipo de estudo, de tipo de descoberta que essas ciências proporcionam. A lógica aparece como subclasse da matemática e da filosofia.

Peirce entende a matemática como a ciência que constrói modelos formais hipotéticos para depois se extrair conclusões necessárias dedutíveis. É possível utilizar os raciocínios e descobertas matemáticas em qualquer campo, em qualquer área, sem que seja qualquer campo específico. Pode ser usada em maneira geral para descrever qualquer estado de coisa. Ela é a ciência que fornece fundamentos básicos, lógicos para todas as demais ciências. Difere-se da investigação lógica porque enquanto a matemática se pauta pelo principio da economia, a lógica quer determinar todos os passos necessários para se chegar a uma conclusão. A investigação filosófica lógica possui um caráter retórico do raciocínio.

Já na análise da filosofia, a segunda ciência mais geral de todas, a lógica é uma parte da investigação. A lógica é a semiótica propriamente dita, é a ciência que aponta as condições gerais dos signos serem signos. A filosofia, também chamada de cenoscopia, somente é superada pela matemática, a mais geral de todas as ciências, na visão de Pierce.

A filosofia lida com os fatos comuns e aprende com a experiência. Começa com um estar no mundo, permeado de senso comum, ou seja, concepções que não apresentam razões para se duvidar delas, de tão imerso em que se está quem a analisa. O senso comum, portanto, é acrítico, pois não se pode duvidá-lo ou questioná-lo. Pode-se somente investigar pela lógica se são válidos ou inválidos. A filosofia pode também ser entendida como a ciência do embate com a experiência, no que ela tem de universal, corriqueiro, mas também de perturbador e resistente.


3.1. A filosofia como fenomenologia:

A primeira subclasse da filosofia é aquela que a compreende como fenomenologia, também chamada de faneroscopia, o estudo do fenômeno. Enquanto fenomenologia é o estudo daquilo que é manifesto, independente se é de fato ou ficcional. Não é a ciência somente daquilo que aparece, mas também daquilo que parece ser de certa maneira. Não se interpreta a experiência para entender o que ela diz a respeito do mundo exterior, apenas inspecionasse seus elementos, com base na observação e na descrição de seus elementos.

Pierce distingue a fenomenologia em três categorias:

a) Primeiridade: tudo aquilo que é por si mesmo, sem relação com nada outro (um tom de cor);

b) Segundidade: tudo aquilo que é em relação ao outro (um fato bruto);

c) Terceiridade: tudo aquilo que é a mediação entre um primeiro e um segundo (uma lei ou um símbolo).


3.2. A filosofia como ciência normativa:

Nessa outra subclasse da filosofia estudam-se as ciências normativas. Trata-se da análise das condições de se obter algo que tenha como um de seus elementos essenciais um ideal. São investigações sobre as maneiras para alcançá-lo. São normativas porque seguem uma norma, um parâmetro, para se chegar a esse fim. O duelo existente é o fato bruto da segundidade, ou seja, o dualismo filosófico entre o ser e o dever-ser.

São as seguintes ciências:

a) Estética: ciência que busca determinar a distinção entre o que é admirável em si mesmo e do que não é. Para tanto, estuda os fundamentos ao estabelecer o admirável em si mesmo. O que se almeja por si mesmo e não por conta de outra coisa. A finalidade última achada admirável por si mesmo.

b) Ética: ciência que busca determinar como se deve agir de moto que as ações sejam em si mesmas admiráveis. Para tanto, estuda-se as condições da conduta deliberada para ser um ideal admirável por si mesmo. Assim, a ética depende da estética.

c) Lógica: ciência que estuda o pensamento deliberado na medida em que ele é uma forma de ação deliberada. A lógica depende da ética porque pensar é uma ação. A lógica estuda as condições de se pensar a verdade, que é o ideal mais admirado.

Nesse sentido, a lógica é SEMIÓTICA, porque estuda a fenomenologia de todas as espécies de signos (estética, ética e lógica). Pode ser considerada com a ciência das leis gerais dos signos, porque todo o pensamento é realizado por signos, ou seja, toda e qualquer expressão do pensamento.

Pierce afirma que a lógica semiótica apresenta três ordens, que ratificam o caráter retórico da investigação filosófica lógica:

a) gramática especulativa: onde se estuda os modos de significar, fazendo que os signos sejam signos, e as várias linguagens em que as asserções são feitas.

b) crítica ou retórica especulativa: onde se estuda o uso efetivo de formas significativas, onde se tem as condições efetivas de significação.

c) metodêutica: onde se estuda os métodos e os procedimentos para o pensamento expressar a verdade.


3.3. A filosofia como metafísica:

Por fim, nessa subclasse, entende-se que a metafísica busca interpretar o universo da mente e o universo da matéria. Busca dizer a realidade em seus traços e características mais gerais. Pierce entende que nesse caso, a metafísica carecia, em sua época, de um rigor e parâmetros científicos.



3. 4. Os três tipos de raciocínios e a natureza da dedução



Na analise da lógica semiótica, na parte da metodêutica, pode-se analisar as formas de inferências, a saber: dedução, indução e abdução (ou hipóteses). Peirce classifica as deduções de silogismos apodíticos e a indução e a abdução de silogismos prováveis. Essa diferenciação se dá em razão da dedução ser a única inferência que se pode ser chamada de necessária, porque toda a informação relevante possível para se chegar à conclusão está contida nas premissas.

Um silogismo dedutivo é aquele que sua validade depende incondicionalmente da relação do fato inferido com os fatos colocados nas premissas. A dedução é uma inferência analítica, pois o resultado não foge à regra. Sua forma é: Regra + Caso = Resultado.


Regra:
Todos os feijões dessa sacola são brancos
Todo S é P
Caso:
Estes feijões são dessa sacola
M é S
Resultado:
Portanto, estes feijões são brancos
Portanto, M é P


Já a indução é um silogismo provável que consiste na inferência de uma regra geral baseada na observação de um resultado de certo caso. Infere uma conclusão de generalidade maior do que a premissa, numa operação que permite passar da determinação da existência para a virtualidade do possível. É o inverso da dedução. Sua forma é: Caso + Resultado = Regra.


Caso:
Estes feijões são dessa sacola
M é S
Resultado:
Estes feijões são brancos
M é P
Regra:
Portanto, todos os feijões dessa sacola são brancos
Portanto, todo S é P


Por fim, a abdução ou hipótese é uma inferência de um caso particular com base na regra geral e no resultado provável da aplicação da regra ao caso. Sua forma é: Regra + Resultado = Caso.


Regra:
Todos os feijões dessa sacola são brancos
Todo S é P
Resultado:
Estes feijões são brancos
M é P
Caso:
Portanto, estes feijões são dessa sacola
Portanto, M é S


Conclui-se que substituindo os lugares dos sujeitos e dos predicados, podem-se obter diferentes tipos de raciocínio.


Inferências
Premissas
Conclusão
Dedução
Regra + Caso
Resultado
Indução
Caso + Resultado
Regra
Abdução
Regra + Resultado
Caso


Para Peirce, esses três tipos de raciocínios são os únicos válidos. A diferença entre a dedução e a indução e a hipótese é que a dedução não aumenta o conhecimento, por isso sendo um silogismo necessário. Já a indução e a hipótese aumentam o conhecimento, razão pela qual são silogismos prováveis.

Ressalta-se que posteriormente Peirce modificou sua análise acerca da dedução, não sendo a conclusão mais necessária, e sim provável, pois pode haver alguma falha em seguir o principio lógico da dedução. Teoricamente, o erro na dedução é impossível, porém pode haver erros no raciocínio de probabilidade, bem como na percepção e experimentação.

Peirce considera a dedução como definidora do raciocínio matemático. Este é entendido como o conhecimento das implicações dos estados de coisas hipotéticas, pois as construções matemáticas podem ser aplicadas em qualquer situação de fato. Por fim, difere que a dedução matemática há dois tipos de deduções, a teoremática (aquele que se pode deduzir algo novo, com caráter heurístico) e a corolarial (a dedução formal matemática).


3.5. Os três estágios da investigação científica e a relação entre indução e abdução:

Em 1910, Peirce entendeu que as formas de inferências não são somente formas, mas também estágios de investigação científica. Nesse sentido, a indução deixa de ser uma inferência ampliativa do conhecimento e se torna um teste empírico, ficando somente a abdução como possibilidade de ampliar o conhecimento.

A indução é entendida como inferência que vai da parte para o todo de um determinado conjunto de casos, sem possibilitar novas descobertas sobre outros conjuntos de casos. A indução é um raciocínio que permite reconhecer o que é verdadeiro acerca do todo, ao reconhecer uma característica geral verdadeira das partes.

Pierce classifica-a em três tipos diferentes:

a) crua ou rudimentar: onde simplesmente concluísse que a experiência futura será como a passada, quando se apresenta o máximo possível de evidências suficientes para se abandonar a hipótese inicial.

b) qualitativa: quando se usa um método hipotético-dedutivo de verificação de teorias, fazendo uso de probabilidades e amostras (onde se analisa aleatoriamente critérios estabelecidos de reconhecimento)

c) quantitativa: busca determinar uma quantidade, medindo o grau de concordância da teoria com os fatos. É considerada como a mais forte para se induzir conclusões, pois serve para medir as probabilidades de maneira precisa, levando-se a uma resposta verdadeira, mesmo que estatisticamente, razão pela qual que toda a prova indutiva é somente uma prova provisória.

Ressalta-se que esses estágios não são auto-implicativos, pois pode acontecer a fusão de métodos, onde a abdução permite formular hipóteses, das quais se deduz e tiram-se conclusões, que podem ser indutivamente testadas. De igual forma, ressalta-se que para Peirce, a abdução é o inicio da atividade cientifica. É o primeiro passo da inquirição cientifica porque parte de uma surpresa na experiência para chegar à hipótese que a explica.


Os três estágios da investigação científica
Abdução
Formulação de hipóteses
Dedução
Conseqüências necessárias
Indução
Teste


3.6. Pragmatismo como lógica da descoberta:


A imaginação de hipóteses é o primeiro passo fundamental da ciência na busca pela verdade. A abdução é a única operação lógica com essa potencia heurística. O procedimento retrodutivo de imaginar hipóteses é o único dotado de potência heurística originária. A abdução é a única operação lógica que introduz qualquer idéia nova, meramente sugere que algo pode ser. Ela não confere necessidade alguma às hipóteses que sugere.

A dedução é o único raciocínio necessário. É o raciocínio da matemática. A indução é o teste experimental de uma teoria e sua justificação é que, embora a conclusão em qualquer estágio da investigação possa ser mais ou menos errôneo, ainda assim a aplicação posterior do mesmo método deve corrigir o erro, determinando o valor de uma quantidade. Já a abdução consiste em estudar os fatos e em inventar uma teoria para explicá-los. Sua justificativa é que, se tivermos de entender as coisas, deve ser desse jeito.

Porém, é necessário testar empiricamente a validade da abdução. Isso é o pragmatismo do método lógico da abdução. Termo criado por Peirce em 1878, que o considerava um método de esclarecimento conceitual, significa que um método para esclarecer os pensamentos e estabelecer significado de conceitos: a significação é dada pelos efeitos práticos concebíveis que uma idéia, ou um termo ou expressão conceituação qualquer prediz.

Para cada tipo de inferência corresponde uma modalidade lógica: à dedução, estabelece raciocínios necessários; indução, raciocínios prováveis; abdução, delimita uma expectação, uma hipótese relativa à conduta futura dos fatos.

O processo abdutivo de estabelecer uma hipótese inicia-se com o reconhecimento de um fato surpreendente, do qual é necessário dar uma explicação inteligível. A surpresa é uma regularidade imprevista, ou seja, certa regularidade de acontecimentos estranhos, que fazem com que se leve a explicá-los.

Essa máxima pragmática é um método que relaciona probabilidade e a plausibilidade das hipóteses com a sua possibilidade de descrever a experiência. Para tanto, utiliza-se como regra a cautela e prudência na adoção de hipóteses. Tal inferência deve sempre se desenvolver em uma conexão argumentativa mais ampla, pois possibilita alcançar a plausibilidade das hipóteses e potencializa o processo heuristicamente, indo além dos limites da mera experiência factual. Assim, com a criação de hábitos de condutas capazes de orientar uma conduta futura, existindo uma convergência entre a forma de conceito e o curso da experiência possível no futuro.

O pragmatismo abdutivo é uma maneira de acertar a verossimilhança das hipóteses com os fatos, bem como de mediar a construção de idéias de conduta racional. Nesse sentido, a abdução é o inverso da indução. A abdução começa nos fatos e busca encontrar uma teoria que os explique. Já a indução parte de uma hipótese explicativa para a busca dos fatos que a sustentem.

Assim, conclui-se que para Peirce não há conhecimento estritamente infalível. Existem graus variáveis de probabilidade de que determinadas teorias continuarão prevendo o curso dos acontecimentos. À investigação compete a tensão da tradição com a mudança, da invenção e o reconhecimento. O confronto com a experiência promove modificações ou invenções de novas teorias, porém não apresenta exatamente o que deve ser feito, nem como. Isso é a atribuição do investigador.


VEJA TAMBÉM:




BIBLIOGRAFIA:

RODRIGUES, Cassiano Terra; SOUZA, Edelcio Gonçalves de. Lógica II: Guia de Estudos. Lavras. UFLA. 2012.


OBSERVAÇÃO:

Esse texto é um resumo que produzi com o material de aula da disciplina 'LÓGICA II' da Graduação em Licenciatura para Filosofia - Universidade Federal de Lavras / EAD - Polo UAB Governador Valadares, produzido em 25/10/2012.