sexta-feira, 22 de novembro de 2013

FILOSOFIA DA LINGUAGEM VIII - NIETZSCHE: LINGUAGEM E MORAL



"Temo jamais nos livrarmos de Deus posto que ainda acreditamos na gramática.” [§5]. 
(O Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche) 

“Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste ato não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a história até hoje!” (NIETZSCHE, 2009)


Nietzsche inaugura a filosofia contemporânea ao empreender a análise sobre a relação entre a linguagem e moral, concretizando uma crítica radical em relação à metafísica a partir da reflexão sobre a linguagem. 

Para o filósofo alemão o individuo utiliza-se da razão para poder conservar sua própria vida, podendo a partir da utilidade e vantagem social encontrada na razão, superar as adversidades encontradas em sua convivência social. Ao consentir viver em sociedade, o individuo, na concepção nietzschiana tende a um “impulso à verdade”, com o intuito de encontrar parâmetros para construir regras de convivência fixas e estáveis. 

A verdade, portanto, resulta do consenso, assim como a sociedade. Noutras palavras, na perspectiva nietzschiana, a verdade resulta de consensos sociais sobre a significação, onde “a legislação da linguagem fornece também as primeiras leis da verdade” (NIETZCHE, 1999, p. 876). Trata-se de um efeito deste acordo e não algo que se dá por si mesmo, isto é, a verdade “não é revelada pela natureza nem por uma divindade, no sentido bíblico de que ‘no princípio era o verbo’” (BARBOZA, 2011, p. 54).

Nietzsche coaduna com Schopenhauer ao entender que a verdade não é a origem externa de toda a linguagem. Pelo contrário, a verdade sempre requer que haja a intervenção das formas a priori responsáveis por produzir intuições sobre as quais a razão poderá produzir seus conceitos. As palavras – enquanto signos das convenções arbitrárias –, por sua vez, possibilitam que o filósofo produza um posicionamento crítico em relação à pretensão de verdade, sobretudo, da metafísica. Noutras palavras, a linguagem, por meio de sua arbitrariedade, faz com que as palavras e suas significações sejam o efeito de convenções que foram firmadas entre os homens para se relacionar. 

Na perspectiva nietzschiana, a verdade ao se fundar em relações de figurações da linguagem, tem uma característica local, haja vista que ela é fruto de uma série de relações e de convenções, que ao serem utilizadas no interior de um povo específico, e por um longo tempo de uso, aparentam-se enquanto obrigatórias e certas. Todo o conjunto significativo de termos e palavras, portanto, decorrem de um processo de fala, por meio de uma metaforização dupla: uma que é um estímulo nervoso que se transporta para uma imagem, e outra, que faz a transposição da imagem formada em um som, numa palavra. 

A reflexão proposta por Nietzsche sobre o caráter metafórico do conjunto significativo de termos e palavras aponta que a linguagem, mesmo complexa como se apresenta, serve para organizar e criar esquemas baseadas na experiência, sendo assim o conceito nada mais que um “resíduo de uma metáfora”.

Nesse contexto, Nietzsche se iguala a Schopenhauer, pois assinala para um empobrecimento no processo de formação de conceitos, uma vez que o estabelecimento arbitrário da linguagem exclui toda a riqueza que existe na realidade, diminuindo a força das intuições de onde provém.

De igual forma, posiciona criticamente à tradição que se baseia na concepção de que os conceitos são entidades que conseguem dar conta da realidade. Nietzsche entende justamente o contrário, ou seja, que a linguagem, por meio dos conceitos, favorece que tal concepção tradicional seja alimentada, e de tal forma que o indivíduo não consegue dar conta disto. 

Para o filósofo não existe uma adequação entre a realidade e a linguagem. A tradição que sempre foi vista como a base segura para o conhecimento, deveria dar espaço para o fluxo instável do devir e para o próprio ser humano como produtor do seu conhecimento. E isto é a sentença da morte de Deus que Nietzsche propõe: o fim da metafísica. 

Ao vê (Deus) como um engano, aponta para o fim da esperança que existia em fundamentos últimos que possam assegurar a realidade para o ser humano e sua linguagem. De igual forma, aponta para o fim na esperança de se ter estabilidade e regularidade, e de todo o processo de empobrecimento que é o conceito, enquanto violentador da externalização da riqueza que a intuição possibilita ao conhecimento. 

Portanto, Nietzsche ao afirmar temer que a humanidade jamais se livrará de Deus, posto ainda acreditava na gramática, anota justamente a dificuldade do ser humano em compreender que Deus é um conceito produzido tradicionalmente, cuja finalidade é justamente fundamentar a realidade. Sentenciar a morte de Deus – do Ser, da Razão, da Verdade, e de todos os demais conceitos metafísicos – é propor o fim da existência de princípios últimos capazes de produzirem a idealidade do real. 



Mentir não é propriamente não dizer a verdade

A concepção nietzschiana inaugura a filosofia contemporânea ao analisar a relação entre linguagem e moral e ao caminhar para uma reflexão crítica da metafísica, considerada radical. 

O referido filósofo compreende que o individuo utiliza da razão para conservar a própria vida, podendo dessa forma, lidar com as adversidades que existem entre os componentes da sociedade. Após o estado de natureza da concepção hobbesiana, ou seja, após o homem consentir em viver em sociedade, por meio de um acordo que elimine seu estado natural de “guerra de todos contra todos”, o homem tendeu-se nessa aceitação da convivência social, já na concepção de Nietzsche, ao “impulso à verdade”, podendo assim encontrar parâmetros que construam regras para a convivência estável e fixa. 

Isso significa que a verdade, assim como a sociedade, vem de um consenso. A verdade, na perspectiva nietzschiana, resulta de consensos sociais sobre a significação, onde “a legislação da linguagem fornece também as primeiras leis da verdade” (NIETZCHE, 1999, p. 876), ou seja, a verdade é um efeito deste acordo e não algo que se dá por si mesmo, ou seja, “não é revelada pela natureza nem por uma divindade, no sentido bíblico de que ‘no princípio era o verbo’” (BARBOZA, 2011, p. 54). 

Já o seu contrário, ou seja, a mentira, decorre da quebra e/ou da dissimulação do que seja verdade e falso dentro que fora acordado coletivamente. Mentir, portanto, é dar sentido diferente daquele em que se havia consensuado coletivamente. 

Nesse sentido, mentir não é propriamente não dizer a verdade, e sim “não empregar uma palavra conforme a sua regra aceita socialmente”, é subverter as convenções significativas existentes. A mentira denuncia a arbitrariedade da convenção linguística e questiona o valor da verdade. 

Portanto, a mentira, por ser capaz de produzir desacordos e instabilidades nas convenções arbitrárias sob as quais a convivência social se estabeleceu deve ser evitada, e não por porque não possa ser universalizada.


BIBLIOGRAFIA:

BARBOSA, Jair. Nietzsche: Linguagem e Moral. In: Filosofia da Linguagem II. Florianópolis: Filosofia/EAD/UFSC, 2011. p. 53-63.

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira. Tradução de Fernando Barros. São Paulo: Hedra, 2007.


OBSERVAÇÃO:

Este texto é um resumo que produzi com o material de aula de disciplina "FILOSOFIA DA LINGUAGEM II" da Graduação em Licenciatura para Filosofia da UFLA - Universidade Federal de Lavras EaD Campus Governador Valadares, produzido em 22/11/2013.


VEJA TAMBÉM:

Filosofia da Linguagem I - O antipsicologismo da Lógica em kant e John Stuart Mill

Filosofia da Linguagem II - A semiótica de Peirce e o Antipsicologismo da Lógica 

Filosofia da Linguagem III - A conceitografia de Frege e o Antipsicologismo da Lógica

Filosofia da Linguagem IV - A teoria das descrições definidas de Russell e o Antipsicologismo da Lógica

Filosofia da Linguagem V - Wittgenstein e os Limites da Linguagem

Filosofia da Linguagem VI - Hume: Linguagem e Experiência

Filosofia da Linguagem VII - Schopenhauer: Linguagem e Mundo

Ética II - David Hume e a Teoria sobre o Sentimento Moral na Filosofia Moderna

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

FILOSOFIA DA LINGUAGEM VII - SCHOPENHAUER: LINGUAGEM E MUNDO



O conhecimento que não depende de linguagem:

Na concepção de Schopenhauer o conhecimento advém da experiência. Porém, ele entende que alguns conhecimentos são a priori da mente, são as “formas puras”, que possibilitam perceber acontecimentos, a partir de uma relação de causa e efeito, daí surgindo o conhecimento, que é expresso por meio da faculdade da razão (por conceitos e palavras), não dependendo, portanto, da linguagem para existir.

Segundo o filósofo, o que se recebe dos sentidos é estruturado pelas intuições puras, podendo se mapear as potencias do intelecto a partir da causalidade, do espaço (forma dos sentidos externos) e o tempo (forma dos sentidos internos), e que a partir disto, pode-se acessar o mundo fenomênico pela experiência.

É pelo entendimento, enquanto faculdade da intuição, é que se processam os dados sensoriais, transformando-os em representações, sendo esta a diferenciação entre os homens e os animais: os homens, ao utilizarem conceitos em relação às representações intuitivas, demonstram uma racionalidade abstrata que possuem e os diferem dos animais que, embora possuam sensibilidade para a realidade, não abstraem do particular para o universal.

O homem, pelo entendimento, consegue conhecer o efeito a partir da causa, o que torna possível estabelecer uma relação que intua o mundo, ratificando que toda a intuição é intelectual, onde se podem formar imagens, cuja atividade cerebral possibilita perceber um objeto. O entendimento ocorre quando da sensação subjetiva se passa para a intuição objetiva, que é cerebral. O que os olhos veem são os efeitos. Pelo espaço pode se formar o sentido externo e situar o objeto como exterior ao organismo. Assim, o reconhecimento do objeto, pelo processo de intuição objetiva é intelectual.

Nesse sentido, o processo de intuição de objetos da realidade é espontâneo e imediato, não sendo considerada uma tarefa discursiva, reflexiva, abstrata, lógica e realizada por meio de conceitos. Há uma independência entre o conhecimento obtido pelo entendimento e o discurso racional estruturado pela linguagem, entre o entendimento que intui e a razão pela que pensa e conceitua abstratamente a respeito do objeto.




As consequências epistemológicas e ontológicas:

As consequências para a epistemologia do conhecimento a partir da experiência, de forma intuitiva, cuja aparição de objetos da realidade é uma atividade intelectual, interna, e, portanto, no âmbito da subjetividade, a partir da causalidade, do tempo e do espaço, é que só se pode falar em “verdade” e em “não verdade” no âmbito do discurso racional, ou seja, o que se é conhecido pela razão corretamente é tido como “verdade” ou “não verdade”, caso seja não correto, uma vez que a noção de verdade demanda de juízos, de uma concepção de linguagem acerca de uma lógica mínima para explicar as ligações entre os conceitos que definem objetos em mudança, ou a partir de conexões entre eles (os objetos) quando estes se ausentam. 

Por sua vez, o que é conhecido como correto pelo entendimento ou cérebro, ou seja, pela intuição, chama-se de realidade ou efetividade. Não há no entendimento a verdade ou não verdade, porque ele se dá no âmbito interno, uma vez que a intuição sempre mostra o mundo em sua ingenuidade, havendo erros, portanto, somente na razão (conhecimento) e nunca na intuição. 

Nesse sentido, a razão, enquanto faculdade da linguagem, se apresenta com um papel considerado secundário na constituição da realidade e do conhecimento, haja vista que serve como instrumental para as intuições do entendimento. A linguagem, por meio de conceitos e palavras, não consegue dar conta da realidade que existe por trás das intuições empíricas. 

Ontologicamente, trata-se da ordem da hierarquia natural, onde a filosofia deve fazer referencia ao mundo da subjetividade dado no tempo ou à objetividade dada do espaço-tempo e na causalidade. Isso aponta para o papel secundário da razão face ao entendimento que intui do real. Nesse sentido, cabe como consequência a critica schopenhaueriana ao sistema filosófico metafísico a partir da análise da filosofia da linguagem, que se assenta numa abstração conceitual para se ler o mundo, “desprezando a fonte do conhecimento, precisamente a ordem sensível, intuitiva das coisas” (Barboza, 2011, p. 41). 

Enquanto papel secundário da razão que processa o pensamento por meio das palavras, tal crítica é relevante, haja vista que as palavras são abstratas, mais universais que particulares, tornando-se vazias. Assim, a filosofia precisa atentar-se às regras de funcionamento da linguagem e às suas características e peculiaridades, haja vista que um mau posicionamento pode transformar a reflexão filosófica num discurso vazio e longe da verdade. 

Por fim, para Schopenhauer não há uma verdade absoluta, detectável de modo universal, por meio de um discurso elaborado pela razão. À Filosofia compete verdades empíricas, por meio do isomorfismo entre a linguagem e o mundo, sem ser exata e limitada como se propõe a matemática e a ciência, e sem ser formalmente rígida como a lógica que advém do pensamento e de suas leis que limitam as verdades por seus discursos, se distanciando da realidade. Cabe, portanto, ao pensamento ser flexível linguisticamente para a existência de verdades e para as formas distintas de se dizer o mundo, sem haver predileção por uma em detrimento de outras.


BIBLIOGRAFIA:

BARBOSA, Jair. Schopenhauer: Linguagem e Mundo. In: Filosofia da Linguagem II. Florianópolis: Filosofia/EAD/UFSC, 2011. p. 29-48.


OBSERVAÇÃO:

Este texto é um resumo que produzi com o material de aula de disciplina "FILOSOFIA DA LINGUAGEM II" da Graduação em Licenciatura para Filosofia da UFLA - Universidade Federal de Lavras EaD Campus Governador Valadares, produzido em 20/11/2013.


VEJA TAMBÉM:

Filosofia da Linguagem I - O antipsicologismo da Lógica em kant e John Stuart Mill

Filosofia da Linguagem II - A semiótica de Peirce e o Antipsicologismo da Lógica 

Filosofia da Linguagem III - A conceitografia de Frege e o Antipsicologismo da Lógica

Filosofia da Linguagem IV - A teoria das descrições definidas de Russell e o Antipsicologismo da Lógica

Filosofia da Linguagem V - Wittgenstein e os Limites da Linguagem

Filosofia da LInguagem VI - Hume: Linguagem e Experiência

Ética II - David Hume e a Teoria sobre o Sentimento Moral na Filosofia Moderna

terça-feira, 19 de novembro de 2013

FILOSOFIA DA LINGUAGEM VI - HUME: LINGUAGEM E EXPERIÊNCIA



A crítica de D. Hume à linguagem da metafísica: 

A verdade, aparentemente, sempre esteve fundada, na perspectiva do paradigma filosófico platônico-cartesiano, com um elemento ideal suprassensível (ou inteligível habitado por Ideias eternas), capaz de fornecer embasamento ao mundo empírico e suas mudanças continuadas. A investigação humeana, de caráter empirista, questiona e propõe-se a dissolver tal posicionamento, ao desconfiar da razão e da linguagem, não procurando a verdade em algo exterior ao próprio mundo. 

Em sua crítica, Hume parece querer asseverar o fracasso da linguagem metafísica e sua incapacidade de produzir discursos que seriam a última palavra acerca dos fenômenos do mundo, e, portanto, como a verdade e forma de conhecimento que possa discursar sobre realidades para além daquelas fornecidas pela experiência.

O filósofo escocês se baseia na experiência para criticar a metafísica com suas ideias complexas e vazias, pois concebe que tais ideias consistem somente em composições de termos simples, oriundos da experiência. Todas as ideias advêm de impressões e de cópias de impressões, não existindo nada que seja oriundo de um mundo suprassensível, havendo assim uma inadequação entre linguagem e mundo. 

Em sua crítica à metafísica, o cético Hume afirma que o ser possui somente impressões sensíveis – e suas respectivas cópias. Para ele, a imaginação são cópias das impressões sensíveis, seja por meio de sensações externas (dos cinco sentidos) ou de sentimentos (impressões internas). Isso significa que se pode afirmar que existe uma distância ontológica entre um mundo sensível e um inteligível, considerando que os pensamentos são reproduções das impressões sensíveis do ser humano. 

Todo e qualquer pensamento, pretenso como verdade, deriva da experiência, se fundamenta em elementos oriundos da percepção empírica. Nas palavras de Barboza (2011, p. 19), "o pensamento complexo é composto de pensamentos simples, que por sua vez fundam-se sobre sensações e sentimentos"

É nesse sentido que a investigação humeana é uma contraposição ao discurso metafísico, pois afirma ser a experiência o guia e critério de validades para as afirmações. De igual forma, é por isso que se pode afirmar a existência de uma concordância entre o ceticismo de Hume e a afirmação de Bacon ora analisada – sem se preocupar com as posições e teses levantadas por este último.

Bacon, ao defender uma razão instrumental, faz a alusão ao quadro para afirmar que a ideia da imagem é recorrente na Filosofia. O quadro, enquanto aquilo que reflete e apresenta algo é um simulacro, uma vez que enamorar-se de uma imagem seria erro no que tange ao seu estatuto, já que o quadro apenas representa aquilo que foi projetado, ou seja, a coisa real, se perdendo a coisa real de vista. De igual forma seria a busca pela verdade por meio de objetos que absolutamente não podem ser experienciados, ou que se busque num falacioso “mundo do além”, como propõe o paradigma filosófico platônico-cartesiano ao discursar sobre questões de fato concernentes aos objetos do mundo.



Os princípios de associação de ideias:

Hume realiza uma critica a qualquer possibilidade de metafísica como estilo de discurso que favoreça o suprassensível e seus objetos em detrimento da experiência. Não concebe, portanto, que a verdade seria suprassensível e que seria apreendido pelo mero pensar e pela linguagem pura, sem embasamento empírico. Na investigação humeana o ser humano possui limites em seu entendimento, “pois não podemos conhecer para além do que nos é dado”. (BARBOZA, 2011, p. 22).

Nesse sentido, as ideias, os discursos, as palavras e frases decorrem da associação de ideias, que se processam segundo certas normas. O mesmo vale para a imaginação e para a memoria, responsáveis pela capacidade de retomar e reinvocar as impressões e sensação. Não existe possibilidade de acontecer encadeamentos argumentativos de forma aleatória, uma vez existir uma maneira correta de se conectar as impressões e as memorias.

Para o filosofo escocês não se pode distinguir os níveis de verdade entre discursos, nem diferenciar o discurso verdadeiro da mera retórica, uma vez que tais instâncias variam apenas em grau de assentimento, já que as mesmas se valem de ideias e pensamentos que surgem da impressão.

Isto ponto, tem-se que as conexões das ideias para Hume é uma critica a qualquer estilo de metafisica e de discursos sobre o suprassensível. São considerados como os três princípios de conexão das ideias a semelhança, a contiguidade, e a causa e efeito.

A semelhança diz respeito à possibilidade de se procurar o original a partir de uma cópia. A contiguidade refere-se à circunstância ou estado daquilo que se é próximo, adjacente. E a causa e efeito, remete-se a causalidade entre um evento A (considerado causa) e um segundo evento B (considerado o efeito), onde o segundo evento seja uma consequência do primeiro. Tais princípios se relacionam com a linguagem na medida em que as ideias, por meio de conexões (em seus diferentes tipos) foram discursos, ou seja, associam as ideias, o que explica o pensamento e suas externalização pela linguagem.


BIBLIOGRAFIA:

BARBOSA, Jair. Hume: Linguagem e Experiência. In: Filosofia da Linguagem II. Florianópolis: Filosofia/EAD/UFSC, 2011.

HUME, David. Tratado da natureza humana. Tradução de Déborah Danowski. São Paulo: Ed. Unesp, 2004.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

FILOSOFIA POLÍTICA II – O PENSAMENTO POLÍTICO DE HOBBES EM “O LEVIATÔ



O presente estudo aponta para tópicos centrais do pensamento político de um importante autor do século XVII chamado Tomas Hobbes, sendo dois em destaque:


1) A doutrina política de Hobbes é construída com base em dois pressupostos antropológicos fundamentais: o primeiro é que na ausência de um poder coercitivo que possa obrigá-los ao respeito mútuo, os homens tendem a se comportar de maneira agressiva uns em relação aos outros. O segundo, é que na própria natureza humana, agressiva, egoísta e individualista encontram-se certos elementos que compensam a agressividade, de modo que se consiga viver numa condição de paz estável e duradora.

2) Hobbes pertence a uma tradição do pensamento político chamado jusnaturalismo, ou seja, um modelo teórico que ajuda a pensar e compreender as causas e os fundamentos do Estado.

Um dos pólos da antítese sobre a qual repousa o modelo jusnaturalista é o chamado estado de natureza, ou seja, condição natural dos homens antes da instituição da ordem civil, ou seja, do Estado. Observe-se logo de inicio, Hobbes jamais acreditou que o estado de natureza universal tivesse sido o estágio primitivo atravessado pela humanidade antes do processo civilizatório. Por um lado, o estado de natureza não consiste de uma situação historicamente datavel e geograficamente assinalável, mas sim uma situação imaginária, hipótese da razão imprescindível para a justificação do Estado. Por outro lado, reúne algumas características próprias que podem ser verificados em eventos históricos concretos. 

Há três situações concretas que são caracterizadas pela lógica do estado de natureza: primeiro lugar, a situação dos povos selvagens de muitos lugares da América que viveriam sem governo. Em segundo lugar, a guerra civil, que divide os homens após a dissolução de um governo constituído. Em terceiro lugar, a guerra entre os reis e as pessoas de autoridade soberana dividi-los pela rivalidade, ou seja, a guerra internacional.

O estado de natureza é uma situação imaginaria, na qual não se encontram obstáculos externos que limitem o desejo. Segundo a concepção hobbeseana o desejo humano é angustia diante do tempo. Cito Hobbes, “de modo que em primeiro lugar, apresento como uma inclinação geral de toda a humanidade, um perpetuo e inquieto desejo de poder e mais poder que cessa apenas na morte”. Essa inclinação geral é justificativa, uma vez que “o objeto de desejo dos homens não é fruir uma vez apenas e por um instante de tempo, mas garantir para sempre o caminho de seu desejo futuro”

A felicidade humana para Hobbes é algo que ultrapassa os estreitos limites do presente, prolongando-se em direção ao futuro, ate que a morte põe fim aos desejos. Por essa razão, ninguém pode contentar-se com a posse de meios suficientes apenas para a obtenção dos bens desejados no presente, pois estes são finitos e se esgotam caso não sejam aumentados. O problema é que o excesso de poder não pode ser compartilhado por toda a humanidade, de modo que, ameaçados pela possibilidade de frustração os desejos dos homens entram em choque. Pode-se dizer que o estado de natureza consiste num espaço hipotético de relações regidas por forças desassociativas. 

Com efeito, a rivalidade inclina a cada individuo a repelir seus concorrentes na trajetória que conduz ao objeto desejado. A caracterização do estado de natureza a partir das forças que o regem, é perfeitamente coerente com a tese pela qual o desejo é um movimento que submetido ao principio de inércia tem-se a propagar-se indefinitamente, a menos que o movimento contrário lhe ofereça resistência. Ora, no estado de natureza a expressão natural do desejo do poder é ilimitado, configurando uma dinâmica de relações chamada guerra. 

A propósito, a expressão “guerra de todos contra todos” celebrizou-se na historia da filosofia como definição do estado de natureza. Já a expressão “o homem é o lobo do próprio homem”, que é uma expressão atribuída a Hobbes, mas que na verdade é de Plauto, caracteriza o individuo enquanto um sujeito de um desejo ilimitado, pois um individualizado exarcebado na raiz das ações dos homens, os inclina a dominar seus semelhantes, ou mesmo, destruí-los quando parecer necessário, tal como lobos vorazes que se lançam sobre suas pressas. 

Segundo os elementos que o compõem, e segundo a lógica do poder, o estado de natureza é um teatro de lobos, que encarnam seus papeis e os apresentam em espetáculos com o propósito de submeter seus adversários, pois os poderes devem ser manifestos através da emissão de signos. 

No celebre capitulo XII do Leviatã, Hobbes apresenta e discute as condições de perpetuação do conflito entre os homens no estado de natureza. O fio condutor do exame de tais condições é a afirmação da igualdade entre os homens. Cito Hobbes: “... a natureza fez os homens tão iguais quanto as faculdades do corpo e do espírito, que embora por vezes sejam encontrado um homem manifestado mais forte de corpo ou de espírito mais rápido que o outro, ainda assim quando tudo isso é calculado em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é tão considerável, que um possa reivindicar para si mesmo qualquer beneficio ao qual outro não pretende tanto quanto ele”.

Hobbes apresentasse como um teórico da igualdade humana, muito embora ele afirme a preeminência do poder de uns sobre o poder de outros. Em que consistiria tão igualdade e o que seria seu fundamento? Não se trata de uma igualdade segundo as faculdades do corpo e do espírito, consideradas isoladamente, uma vez que reconhece a possibilidade de distinções manifestadas entre a força corporal e a rapidez do espírito dos homens. 

Vale lembrar que o poder natural de um homem, segundo o capítulo X de Leviatã, consiste na sua eminência de suas faculdades do corpo e do espírito. Os poderes naturais considerados separadamente, isoladamente uns dos outros, consistem em superioridade, ou empregar os termos dos elementos ovulo em excesso, e por essa razão são diferentes de homem para homem. Em conformidade com a definição dos poderes naturais, mais também pela experiência, há pluralidades entre os poderes humanos designados pelo mesmo nome. O poder do corpo, designado pelo nome força, por exemplo, é passível de variações entre os indivíduos. O mesmo vale para capacidades intelectuais, que os homens possuem em graus diversos, uns em relação aos outros. Quanto aos poderes instrumentais, os homens também são desiguais. Os meios de que os indivíduos dispõem para produção de mais poder não podem ser universalmente compartilhados, e se o possuem não haveria rivalidade pela sua posse. Os poderes instrumentais encontram-se divididos em proporções diferentes entre a humanidade, introduzindo desigualmente entre os homens. Um exemplo típico é o das riquezas, mas o exemplo mais paragnemático é o do maior dos poderes humanos, aquele que é composto pelos poderes da maioria dos homens. O exercício desse poder tem como missão a inferioridade dos poderes daqueles sobre os quais se exercesse. 

Pode se concluir que segundo os poderes naturais tomados isoladamente, e também pelo poderes instrumentais, os homens são desiguais. Os homens são iguais segundo suas faculdades do corpo e do espírito, considerados, conjuntamente, pois, conforme Hobbes, “quando tudo é calculado em conjunto, a diferença entre um e outro homem, não é tão considerável que um homem não possa reivindicar para si mesmo qualquer beneficio ao qual outro homem não pretenda tanto quanto ele”

A igualdade afirmada por Hobbes consiste numa habilidade para obtenção de poderes já alcançados pelos rivais, comum a toda a humanidade. Os poderes naturais de cada indivíduo, embora sejam diversos quando considerados isoladamente, produzem os mesmos efeitos quando atuem em conjunto. O efeito, citando Hobbes, “quanto à força do corpo, o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, seja por uma maquinação secreta, seja por confederação com outros, que estão no mesmo perigo que ele”. Ou seja, do ponto de vista das faculdades corporais e intelectuais, existem homens mais fortes e homens mais fracos, existem homens mais inteligente e homens menos inteligente. Mas quando se considera todas essas coisas conjuntamente, se percebe que o mais forte pode ser morto pelo mais fraco. O mais inteligente pode ser morto pelo menos inteligente. Os homens são iguais no que diz respeito à capacidade de matar.

A igualdade com que a natureza fez os homens é a primeira condição de perpetuação do conflito, da qual deriva uma segunda, a igualdade de esperança na obtenção do mesmo fim. E por isso, se dois homens desejam a mesma coisa, da qual, não obstante, ambos não podem desfrutar, se tornam inimigos, e no caminho de seu fim, tentam destruir ou subjugar um ao outro. 

A esperança na obtenção de bens que não podem ser compartilhado por todos encoraja a cada homem a enfrentar seus rivais com vistas a realização de seus propósitos. Pode se perceber que a esperança na obtenção de um fim cobiçado por muitos é derivada da esperança de cada homem na vitoria sob seus adversários.

Finalmente, a igualdade de esperança tem como conseqüência uma guerra preventiva, por meio da qual cada indivíduo procura proteger-se das investidas dos adversários, pois, “dessa insegurança de uns em relação aos outros, não há nenhum meio para qualquer homem se proteger tão razoável como a prevenção”. Na guerra, o que cada um conquista, pode se tornar objeto de ambição por seus adversários, tudo aquilo que o homem obtém pode ser subtraído por seus concorrentes. A igualdade entre os homens impede que qualquer vitória seja decisiva, e o medo faz com que os homens procurem evitá-la, neutralizando todo aquele que constitua uma ameaça, de modo que a guerra se arrasta enquanto houver suspeita de ofensiva. Enquanto houver homem suficiente próximos uns dos outros, há um perigo a ser temido e evitado, tanto mais quanto coloca em jogo a conservação de cada um, e que por isso, na guerra, autoriza a antecipação do ataque.

Estas são as condições que Hobbes aponta como caracterizadoras do estado de natureza e que são responsáveis pela perpetuação do conflito. Hobbes propõe uma solução para o problema da guerra, que divide os homens no estado de natureza, a partir de aspectos jurídicos da teoria civil formulada pelo autor, com destaque com a teoria jurídica da representação, formulada no capitulo XVI do Leviatã. 

Hobbes desenvolveu três grandes tratados políticos: os Elementos da Lei Natural e Política, que circularam na Inglaterra, na forma de manuscritos, no ano de 1640, sendo uma obra destinada a fundamentar a ciência da política e a ciência da justiça; o “De cive”, do cidadão, publicado no ano de 1642, que consiste numa obra onde Hobbes procura demonstrar sua visão sócio-política sobre o cidadão numa Inglaterra em guerra civil. De certa forma ela mostra os conflitos de poderes entre realeza e parlamento inglês; e finalmente, o Leviatã, o mais famoso e importante, publicado em 1651. A doutrina política hobbesiana é bastante parecida, mas o Leviatã apresenta uma novidade em relação aos outros, a teoria jurídica da representação no capítulo XVI. 


Hobbes e o estado de natureza

As condições que Hobbes aponta como caracterizadoras do estado de natureza e que são responsáveis pela perpetuação do conflito estão diretamente relacionadas à igualdade entre os homens. A igualdade com que a natureza fez os homens é a primeira condição de perpetuação do conflito, da qual deriva uma segunda condição: a igualdade de esperança na obtenção do mesmo fim. 

Por tal razão, se dois homens desejam a mesma coisa, da qual, não obstante, ambos não podem desfrutar, estes homens se tornam inimigos, e no caminho para obtenção de seu fim, tentam destruir ou subjugar um ao outro. Os homens enfrentam seus rivais com o objetivo de realizarem seus propósitos, por serem encorajados na esperança da obtenção de bens que não podem ser compartilhados, e, portanto, percebe-se que a esperança na obtenção de um fim cobiçado por muitos derivasse da esperança de cada homem na vitória sob seus adversários.

Tal igualdade de esperança tem como consequência uma guerra preventiva, onde cada indivíduo procura proteger-se das investidas dos adversários, pois, “dessa insegurança de uns em relação aos outros, não há nenhum meio para qualquer homem se proteger tão razoável como a prevenção”. É por meio da guerra que o que cada pessoa conquista pode se tornar objeto de ambição por seus adversários. É na guerra que tudo aquilo que o homem obtém pode ser subtraído por seus concorrentes. 

Por isso, a igualdade entre os homens impede que qualquer vitória seja decisiva. Como consequência, o medo faz com que os homens procurem evitá-la, neutralizando todo aquele que constitua uma ameaça, de modo que a guerra se arrasta enquanto houver suspeita de ofensiva. Enquanto houver homem suficientemente próximo uns dos outros, persiste um perigo que deve ser temido e evitado, tanto mais quando coloca em jogo a conservação de cada um, e que por isso, na guerra, vai autorizar a antecipação do ataque.


As causas da guerra

Hobbes, no capítulo XIII de “Leviatã”, discorrendo sobre a condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria, aponta “que na natureza do homem”“três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória”.

Assim, as causas do conflito que divide os homens no estado de natureza são três, a saber:

O primeiro é a competição. A competição enquanto causadora de conflitos se caracteriza pela ambição por poder e por notoriedade. Para tanto, não há limites éticos. Para se conseguir o poder e a notoriedade e se chegar aos objetivos, notadamente lucrativos, todos os limites podem ser ultrapassados. No passado, isto acontecia nas competições em estádios olímpicos. Atualmente, essa competição visa, sobretudo, os lucros financeiros e os ganhos pessoais, em todos os campos – profissional, comunicacional, religioso, etc. Pode-se, inclusive, para obter o poder, utilizar-se da violência, tornando realidade o senhorio sobre “pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens”.

Já a segunda causa de conflitos apontada por Hobbes é a desconfiança. Através do pretexto de se defender a soberania, há toda uma articulação preparatória para o estado de guerra. Se necessário, em nome da soberania, utiliza-se da violência para “defender” as pessoas que possam ter suas soberanias violadas. Recentemente, o Brasil viu-se violado em sua soberania pelos Estados Unidos da América, que teriam espionado trocas de mensagens da Presidência da República com seus subordinados, com o pretexto da defensa preventiva daquele país em relação às eventuais futuras ações do governo brasileiro.

Por fim, na concepção hobbesiana, a terceira causa de discórdia é a glória, ou seja, é a busca de se ter uma boa reputação do nome. É a preocupação com a própria imagem em relação às demais pessoas. Nas palavras do filósofo, a discórdia pela glória se dá “por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opiniões”. Ressalta-se que, caso isso não seja possível, utiliza-se até da violência, para rebater “qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome".


A polêmica com Aristóteles

Hobbes refuta a concepção aristotélica de que os homens seriam capazes naturalmente de viver socialmente uns com os outros, a partir de seis motivos. O primeiro diz respeito aos homens viveram envolvidos na competição pela honra e pela dignidade, de forma constante. A inveja, o ódio, a guerra são consequências pela ambição pelo poder e pela notoriedade, pelo desejo de ser superior aos outros. 

O segundo motivo está relacionado ao fato de que, por haver entre os homens o espírito competitivo, tais homens encontram o prazer somente naquilo que os fazem superior aos outros, promovendo uma distinção significativa entre o que é bem comum e individual, acabando pela promoção de satisfação pessoal, de suas próprias necessidades. 

O terceiro motivo é o fato dos homens possuíram o uso da razão. Por isto, eles percebem e julgam sempre os outros por seus erros, vendo a si mesmo como mais hábeis, superiores. 

Já o quarto motivo está relacionado ao fato dos homens usarem a linguagem como instrumento de concretização da discórdia entre si. Pela comunicação influenciam, perturbam, distorcem fatores essenciais nos relacionamentos, o que promove a desordem.

O sexto motivo é que os homens possuem um acordo artificial para conviverem em sociedade. Tal convivência, por ser obrigatória, faz com que haja um poder comum que os mantenham num respeito mútuo, guiando suas ações em benefício de todos, protegendo-os das injurias alheias. Tal poder estabelecido faz com que os homens não precisem confiar somente em suas próprias forças e aptidões para se protegerem.


O direito de natureza

A concepção hobbesiana a respeito do direito natural era de sê-lo a liberdade de usar o seu poder inerente, para a preservação da própria natureza humana, da maneira que melhor achar necessária, que há em cada ser humano. Nesse sentido, o uso do próprio poder que o homem possui para a preservação de sua própria vida, habilita-o para fazer tudo o que decorresse de seu julgamento e de sua razão, no intuito de ter os meios adequados para atingir tal finalidade.

No entanto, o direito natural mesmo estabelecido pela razão, às vezes não se mostra suficiente para garantir a paz entre os homens, superando as condições de conflitos, justamente por causa da liberdade. É a liberdade enquanto “ausência de impedimentos externos” capazes de tirar “parte do poder que cada um tem de fazer o que quer”, que faz com que, às vezes, a paz não se efetive. 

Isso ocorre porque o direito natural é uma regra geral, um preceito firmado pelo uso da razão, e que visa à proibição do homem de utilizar de todos os mecanismos para a destruição da vida, bem como dos meios necessários para preservá-la, ou da omissão daquilo que possa contribuir como a melhor forma de preservação da existência humana.

Nesse sentido, o direito difere-se – e é antagônico – à lei. O direito consiste no uso da liberdade de se fazer ou de se omitir em relação a alguma coisa. Já a lei é impositiva, determinando, obrigando, que se faça ou se omita a fazer algo. Ou seja, enquanto o direito abre espaço para a liberdade, a lei impera a existência da obrigação. 

Portanto, o direito natural, pelo uso da razão, nem sempre proporciona a paz na convivência entre os homens, justamente pela possibilidade destes em utilizarem a liberdade.


A primeira lei da natureza

A concepção hobbesiana a respeito do direito natural era de sê-lo a liberdade de usar o seu poder inerente, para a preservação da própria natureza humana, da maneira que melhor achar necessária, que há em cada ser humano. Nesse sentido, o uso do próprio poder que o homem possui para a preservação de sua própria vida, habilita-o para fazer tudo o que decorresse de seu julgamento e de sua razão, no intuito de ter os meios adequados para atingir tal finalidade.

No entanto, o direito natural mesmo estabelecido pela razão, às vezes não se mostra suficiente para garantir a paz entre os homens, superando as condições de conflitos, justamente por causa da liberdade. É a liberdade enquanto “ausência de impedimentos externos” capazes de tirar “parte do poder que cada um tem de fazer o que quer”, que faz com que, às vezes, a paz não se efetive. 

Isso ocorre porque o direito natural é uma regra geral, um preceito firmado pelo uso da razão, e que visa à proibição do homem de utilizar de todos os mecanismos para a destruição da vida, bem como dos meios necessários para preservá-la, ou da omissão daquilo que possa contribuir como a melhor forma de preservação da existência humana.

Nesse sentido, o direito difere-se – e é antagônico – à lei. O direito consiste no uso da liberdade de se fazer ou de se omitir em relação a alguma coisa. Já a lei é impositiva, determinando, obrigando, que se faça ou se omita a fazer algo. Ou seja, enquanto o direito abre espaço para a liberdade, a lei impera a existência da obrigação. 

Portanto, o direito natural, pelo uso da razão, nem sempre proporciona a paz na convivência entre os homens, justamente pela possibilidade destes em utilizarem a liberdade.


A segunda lei da natureza

Hobbes idealizava as leis de natureza como instrumental para determinar as condições necessárias de superação, de forma prudencial, dos conflitos existentes na convivência humana. A primeira lei dizia respeito à procura pela existência de um estado de paz que fosse capaz de fazer com que a condição humana de guerra de todos contra todos fosse solapada. 

A segunda lei de natureza, por sua vez, apontava para o uso de todos os meios possíveis, para a defesa pessoal. Como ápice da suma do direito natural, decorria desta segunda lei que todos os homens deviam concordar, quando os outros também assim o fizessem – levando em consideração a necessidade do estabelecimento da paz e a necessidade da defesa de si mesmo –, que os homens se contentassem em relação aos outros, na medida da liberdade em que os outros homens assim os permitissem em relação a si mesmos. 

Isto se justifica na medida em que a condição de guerra é justamente a possibilidade de cada homem utilizar o seu direito de fazer tudo quanto queira, incluindo a liberdade de atingir o corpo de outros homens. Se os homens não renunciarem a esse direito, bem como os outros homens na mesma medida de liberdade de renúncia, não há possibilidade de paz e não há razão para que alguém se prive de seu direito, pois tal privação seria “oferecer-se como presa (coisa a que ninguém é obrigado), e não dispor-se para a paz”.

A renúncia do direito de utilizar de tal liberdade coaduna com a do Evangelho – que determina se que faça ao outro somente aquilo que queres que se faça a ti – como a materialização de se privar da própria liberdade, negando ao outro o beneficio de seu próprio direito, ao fazer a mesma coisa. É se afastar para que o outro possa gozar de seu direito original sem obstáculos, porém, sem que o outro, no uso de seu direito, seja também um obstáculo da parte daquele que se afasta.

A consequência dessa segunda lei de natureza é a diminuição equivalente dos impedimentos ao uso do próprio direito original para ambos, na medida em que ambos desistem de seus direitos originais da liberdade de fazer o que quiser, inclusive sobre os corpos alheios. Tal diminuição dos impedimentos pela desistência de seus direitos naturais pode se dar por renúncia (quando não se importa em favor de quem irá ser beneficiado) ou por transferência para outrem – quando há a pretensão de beneficiar especificamente alguma(s) pessoa(s) determinada(s).

Ao se abandonar ou adjudicar de seu direito, aquele que o faz obriga-se, forçar-se, a não impedir o beneficio daquele a quem abandonou ou adjudicou de seu direito. Trata-se de um dever não tornar nulo tal ato de renuncia, não ocasionando dessa forma, a injustiça e a injuria, uma vez que tê-lo feito de forma voluntária.



O contrato social

A renúncia do direito de utilizar da liberdade proveniente do direito de natureza, baseada na privação da própria liberdade ao negar ao outro o beneficio de seu próprio direito, fazendo a mesma coisa, visa que aquele que renuncia se afaste para que o outro possa gozar de seu direito original sem obstáculos, porém, sem que o outro, no uso de seu direito, seja também um obstáculo da parte daquele que se afasta.

A conseqüência dessa segunda lei de natureza é a diminuição equivalente dos impedimentos ao uso do próprio direito original para ambos, na medida em que ambos desistem de seus direitos originais da liberdade de fazer o que quiser, inclusive sobre os corpos alheios. Tal diminuição dos impedimentos pela desistência de seus direitos naturais pode se dá por renúncia (quando não se importa em favor de quem irá ser beneficiado) ou por transferência para outrem – quando há a pretensão de beneficiar especificamente alguma(s) pessoa(s) determinada(s).

Ao se abandonar ou adjudicar de seu direito, aquele que o faz obriga-se, forçar-se, a não impedir o beneficio daquele a quem abandonou ou adjudicou de seu direito. Trata-se de um dever não tornar nulo tal ato de renuncia, não ocasionando dessa forma, a injustiça e a injuria, uma vez que tê-lo feito de forma voluntária. A prática daquilo que a abandonou é considerada uma injustiça e injúria, justamente porque se praticou aquilo que inicialmente se tinha, de forma voluntária feito, ou seja, o comprometimento de não fazê-lo. 

A renúncia ou transferência de um direito podem ser feitas pelo homem por meio de uma declaração ou expressão, onde se emite um sinal ou sinais voluntários que sejam suficientes para afirmar a renuncia ou transferência daquilo ao que o outro aceitou. Tais sinais podem ser manifestar por meio de palavras ou ações, ou por palavras e ações. Por meio destas os homens ficam obrigados a um vinculo que não é proveniente da própria natureza, mas sim de um medo de que, no caso de alguma ruptura por algumas das partes, haverá como conseqüência a prática de um mal.

Nessa renúncia ou transferência de um direito há sempre a necessidade da reciprocidade de se receber outro bem daquele a quem se renunciou ou lhe transferiu o primeiro direito. Enquanto ato voluntário visa-se, portanto, os homens visam “algum bem para si mesmos”. Por tal razão, há alguns direitos que são irrenunciáveis (não suportam o abandono) ou são considerados intransferíveis, como o direito de resistir a quem o ataque pela força para tirar-lhe a vida; os ferimentos, as cadeias e o cárcere; bem como a segurança da pessoa de cada um, no que se refere à sua vida e quanto aos meios para preservá-la. 


A teoria hobbesiana de representação

A concepção hobbesiana compreende que o Estado é a personificação da unidade entre os homens, fruto de uma convenção social, onde se reduz as vontades individuais (que se colidem quando individualizadas), numa só vontade.

Na compreensão desta teoria da representação, Hobbes entendia que uma pessoa é “aquele cujas palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como representando as palavras ou ações de outro homem”. Nesse sentido, ressalta que, etimológica, a palavra “pessoa” vem do latim, que significa “o disfarce ou aparência exterior de um homem, imitada no palco”, o que para a língua grega, dita como “prósopon”, que significava rosto. 

Assim, ao surgir para expressar o disfarce do rosto, por meio de máscaras, viseiras utilizadas nos palcos, a palavra “pessoa”, passou a representar também as palavras e ações, independentemente do espaço físico, sendo utilizada não somente nos palcos, mas também nos tribunais. 

O filósofo inglês concebeu ainda a possibilidade da existência da pessoa, enquanto natural (quando elas são consideradas como suas próprias) ou como pessoa fictícia/artificial (quando são consideradas como representando as palavras e ações de um outro). 

A pessoa, em sua atuação (seja no palco, nos tribunais, ou em conversações correntes) promove sempre uma representação, seja de si mesmo, seja de outrem. Nesse último caso, ou seja, quando representa à outrem, a pessoa – enquanto artificial – é considerada como “portador de sua pessoa”, recebendo, para tanto, designações diversas (representante, mandatário, lugar-tenente, vigário, advogado, deputado, procurador, ator, e outras semelhantes) que variam de acordo com as ocasiões onde são empregadas.

Porém, se a pessoa é natural, age por autoridade, onde suas palavras e ações representam a si mesmos. Nesse caso o ator é também o autor, ou seja, à ele pertence a posse do domínio, e por isto age conforme sua própria autoridade – podendo praticar qualquer ação, diferentemente da pessoa artificial, onde aquele que atua, atua por comissão ou licença daquele a quem pertence o direito. 


A representação e o grande teatro das relações humanas

A teoria hobbesiana da representação permite compreender a idealização do Estado enquanto personificação da unidade entre os homens, de forma que as vontades individuais sejam reduzidas em favorecimento de uma única vontade e que agrade à maioria. Portanto, a representação é a possibilidade da promoção de uma realidade de paz, fazendo com que o estado natural do homem (de viver em constante guerra de todos contra todos) seja impelido.

Assim como no espaço de atuação teatral, as pessoas quando representam determinadas coisas inanimadas, como por exemplo, uma igreja, um hospital, tem autorização para promover a conversação destas instituições, que são conferidas por seus proprietários. Isso significa que o comportamento humano tende a aceitar a personificação como uma forma de promoção da convivência pacífica, enquanto participantes de um Estado de governo civil. O mesmo vale para as pessoas que não possuem o uso da razão por si mesmas, para a personificação dos ídolos (como os deuses pagãos), e a própria pessoa do Deus, onde tais passam a ser representados por outras pessoas, que agem em seus nomes.

A concepção do Estado, enquanto organização civil, objetiva que as pessoas consigam conviver de forma pacífica. Para tanto, habilita a personificação de determinadas pessoas em determinados contextos, de forma com que, assim como o contexto de atuação teatral, aqueles que representam determinados representados, visam à conversação destes, enquanto integrantes do Estado civil. Para tanto, aquele que representa à muitos, tem em sua voz a constituição de todos eles, uma vez que é a maioria.

Nesse sentido, cada homem que é representado transfere ao seu representante a sua própria autoridade em particular. De igual forma, a cada um pertence as ações praticadas pelo representante, quando lhe seja conferida autoridade sem limites para tanto. 



A noção hobbesiana de autorização

O ato jurídico mediante o qual uma pessoa artificial é constituída é a autorização, ou seja, é o direito de praticar qualquer ação, cujos efeitos decorrem da comissão ou licença daquele a quem pertence o direito. Nesses casos, aquele que pratica as ações comissionadas e/ou licenciadas é considerado o ator. As palavras e as ações deste ator pertencem, porém, ao seu autor, razão pela qual o ator age por autoridade dada pelo o autor.

Tal ato jurídico confere legitimidade à representação quando obriga o autor como se o mesmo realizasse as ações que o ator realiza com sua autorização, e de igual forma, obriga também ao autor as consequências das ações realizadas pelo ator em seu nome. Uma vez que os pactos entre os homens – que os fazem com sua capacidade natural –, tem validade também para as ações realizadas pelos atores, representantes ou procuradores (pessoa artificial), que agem por autoridade, dentro dos limites que lhes foram comissionados, não os ultrapassando, tal representação se legitima.

Assim, se o autor realiza qualquer ação que seja considerada contra a lei da natureza em razão da ordem do autor, tem-se que quem violou a lei da natureza fora o autor e não o ator, pois este último assim o fez por ser obrigado a cumprir a ordem do autor. O ator o faz para cumprir os contratos, uma vez que o seu descumprimento seria ir contra a lei da natureza. 


Atribuição verdadeira ou por ficção

A distinção hobbesiana entre atribuição verdadeira e fictícia ocorre quando há a personificação. A atribuição verdadeira é aquela quando uma pessoa, a partir de um pacto de autorização, age a partir do direito consentido pelo seu ator de praticar atos e palavras em seu nome. Já a atribuição fictícia se dá quando não se pode ter personificação, como é o caso das coisas inanimadas. 

Hobbes afirmava que tais coisas (as inanimadas), como por exemplos, “uma igreja, um hospital, uma ponte”, podem por meio de “um reitor, um diretor ou um supervisor”, serem personificadas. No entanto, tal atribuição é fictícia, uma vez que aquilo que se personifica é privado de razão e de vontade, não podendo desta forma, pactuar uma autorização de representação para aquele que a personifica. Compete a estes que personificam tais coisas inanimadas, somente “autoridade para prover à sua conservação, a eles conferida pelos donos ou governadores dessas coisas. Portanto, essas coisas não podem ser personificadas enquanto não houver um estado de governo civil”.

Nesse sentido, a Pessoa Artificial do Estado é aquela decorrente da organização do governo civil, cujo Estado se dá com a representação consentida por muitos homens, para que o mesmo, enquanto Estado de governo civil, o represente, sendo “a voz do maior número” de pessoas, e, portanto, “considerada como a voz de todos eles”.


A unidade da soberania

A teoria hobbesiana da representação permite compreender a idealização do Estado enquanto personificação da unidade entre os homens, de forma que as vontades individuais sejam reduzidas em favorecimento de uma única vontade e que agrade à maioria, sendo possível a partir disso realizar uma teorização da Pessoa Civil do Estado, enquanto convenção jurídica que o concebe como aquele que representa a voz da maioria das pessoas, que se organizam para conviverem em paz.

A Pessoa Civil do Estado, por meio da representação consentida pelas pessoas para que as represente resulta na possibilidade da promoção da paz, o que indica que o estado natural do homem (de viver em constante guerra de todos contra todos) consegue ser impelido. 

O Estado – enquanto Pessoa Civil – é uma organização cuja finalidade é fazer com que as pessoas consigam conviver de forma pacífica, e para tanto, habilita a personificação de determinadas pessoas em determinados contextos, de forma que aqueles que representam determinados representados objetivem à conversação destes, pelo simples fato de serem integrantes do Estado civil. 

Tem-se assim que o Estado, enquanto Pessoa Civil é aquele que representa a muitos, tendo em sua voz a constituição de todos eles, uma vez ser a maioria.


OBSERVAÇÃO: 

Este texto é um resumo que produzi com o material de aula de disciplina “FILOSOFIA POLÍTICA II” da Graduação em Licenciatura para Filosofia da UFLA – Universidade Federal de Lavras EaD Campus Governador Valadares, produzido em 28/10/2013.


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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

DESCARTES E O NASCIMENTO DA FILOSOFIA MODERNA



O mundo passou por um processo de modificações epistemológicas e ontológicas a partir das questões levantadas no século XVII, com o advindo da Revolução Científica. Isto marcou o pensamento ocidental no que se diz respeito ao próprio modo de se fazer ciência, bem como de se conceber e argumentar a ciência. Com a ciência moderna, houve uma troca da teoria pela prática. Ela ultrapassou a compreensão da Filosofia Antiga sobre as explicações dos fenômenos naturais, substituindo a noção aristotélica de finalidade enquanto causa final, pela noção de mecanismo, a partir da física e da matemática.

Com tal ruptura ontológica, substituindo a proposta contemplativa e, portanto, teórica de caráter aristotélico-tomasiano – de “subjetividade transcendental” para se explicar a natureza –, para a sistematização da razão, por meio da ciência, Galileu utilizou-se do método experimental para apontar para a natureza com uma atitude instrumental e prática, mudando totalmente a visão de mundo por outra, onde o método experimental, enquanto uma nova postura e linguagem de investigação foi apenas uma das características desta nova proposta de ciência, que se dá com a Revolução Científica.

Galileu teve uma atitude ousada de se pensar os objetos da ciência natural de uma nova forma. Com a introdução do método experimental na ciência moderna com a matemática, Galileu propunha uma nova linguagem e postura, indo além da história da ciência em si, coma descoberta do telescópio, por exemplo. Para além da destruição da teoria do cosmo na perspectiva grega que dominava na era antiga, bem como a geometrização do espaço (Koyré, 1982, p. 154), Galileu apontava para uma transformação da própria ideia de natureza, onde a “mudança da epistemologia exigiu uma nova ontologia” (Souza, 2013, p. 21).

Assim, a revolução cientifica influenciou o pensamento filosófico, porque foi baseada num pensamento cientifico onde houve uma mudança radical com a racionalidade cientifica, rompendo com premissas de uma filosofia natural, a partir da metodologia empirista, com a aplicação da matemática, enquanto a natureza. Isso significou uma nova compreensão da geometrização do espaço e da dissolução do cosmos, a partir dessa interpretação realista da ciência matemática da natureza, indo, portanto, além das abordagens hipotéticas de Copérnico de Tomas de Aquino. Para tornar possível sua compreensão realista, Galileu teve como premissas além das comprovações da observação telescópicas, premissas metodológicas para sua ciência, onde a linguagem matemática distinguiu-se da linguagem metafórica, bem como da moral, da razão teórica, fundando-se uma nova ontologia da ciência, da razão prática.

Essa racionalidade cientifica só é legítima para Galileu se for matemática, uma vez que ela é a única para se explicar a natureza, que é “inexorável e imutável”. Tal tese permitiu Galileu opor duas linguagens, a científica (matemática) e a teológica (metafórica). Na compreensão de Galileu, portanto, essa nova ciência é própria de uma nova ontologia.


AS MUDANÇAS DE CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS NA MODERNIDADE

O trecho em tela aboca para o processo de modificações epistemológicas e ontológicas pelo qual passou o mundo, em sua apresentação histórico-filosófica de problemas a partir das questões levantadas no século XVII, com o advindo da Revolução Científica marcando o pensamento ocidental, em relação ao próprio modo de se fazer ciência e de se conceber, de se pensar, e argumentar a ciência. 

A ciência moderna, nesse sentido, não se tratou apenas de uma troca da teoria pela prática. Ela ultrapassou a compreensão da Filosofia Antiga sobre as explicações dos fenômenos naturais, substituindo a noção aristotélica de finalidade enquanto causa final, pela noção de mecanismo, a partir da física e da matemática. Nessa ruptura ontológica, com a substituição da proposta contemplativa e, portanto, teórica de caráter aristotélico-tomasiano – de “subjetividade transcendental” para se explicar a natureza –, para a sistematização da razão, por meio da ciência, Galileu, em O Ensaiador (1983), utilizou-se do método experimental para apontar para a natureza com uma atitude instrumental e prática, mudando totalmente a visão de mundo por outra, onde o método experimental, enquanto uma nova postura e linguagem de investigação apresentou como apenas uma das características desta nova proposta de ciência, que se dá com a Revolução Científica. 

É o filósofo contemporâneo Husserl, em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental (1935-6), que ao propor uma análise do desempenho de Galileu na Filosofia Moderna, notadamente nesse processo de reconfiguração da cultura cientifica e filosófica do pensamento ocidental, assinala para a crise dicotômica que surgiu a partir dessa tradição moderna da forma de se ver o mundo da vida, onde as oposições (mundo pré-científico e mundo cientifico; mundo intuitivamente dado e mundo percebido através de categorias científicas; subjetividade transcendental e objetivismo da ciência moderna da natureza) visavam fortalecer a filosofia enquanto uma “ciência rigorosa” (1989) que sistematizava a razão, bem como pretendia “estabelecer algo de firme e de constante nas ciências” (Descartes, 1979, p. 85).

Descartes apontou-se, nesse contexto, como aquele que teria se aproximado do cumprimento dessa tarefa de se descobrir o cogito (descoberta da autoconsciência como conhecimento primeiro e basilar do sistema metafísico), porém, para tanto, incorporou a tese objetivista de Galileu sobre a relação entre consciência e mundo, onde a subjetividade e a transcendência deram lugar à objetividade, a consciência e ao objeto, enquanto instâncias reais, enquanto coisas. 

Em Galileu, Descartes encontrou uma atitude ousada de se pensar os objetos da ciência natural de uma nova forma. Com a introdução do método experimental na ciência moderna com a matemática, Galileu propunha uma nova linguagem e postura, indo além da história da ciência em si, coma descoberta do telescópio, por exemplo. Para além da destruição da teoria do cosmo na perspectiva grega que dominava na era antiga, bem como a geometrização do espaço (Koyré, 1982, p. 154), Galileu apontava para uma transformação da própria ideia de natureza, onde a “mudança da epistemologia exigiu uma nova ontologia” (Souza, 2013, p. 21). 

Na realidade, além da mudança da perspectiva de Ptolomeu sobre a natureza e seus movimentos regulares, de caráter concêntrico, para os modelos matemáticos de explicação desses fenômenos que apontavam um caráter excêntrico, a introdução do método experimental de Galileu transformou mais profundamente ao propor uma nova epistemologia e uma nova ontologia, na medida em que se apresentou uma nova compreensão do mundo permeada por uma objetividade cientifica, com objetos reais, uma “matematização indireta” da natureza, onde a mesma se assumiu enquanto ser natural, em si mesmo, matemático. 

Isto significou a ruptura com a ontologia clássica aristotélica, para o qual a natureza o mundo possuía movimentos sublunar e supralunar, sendo a física a ciência que estuda tais movimentos, ao lado da matemática, que por sua vez estuda o que é imóvel e permanente, bem como da teologia, enquanto instrumental para sustentar sua pretensão teórica, formando dessa maneira, as ciências teoréticas da teoria clássica. 

Ainda nesse contexto, tem-se Agostinho com a proposta da existência das “ciências médias” (Grosseteste, 2000), ou seja, ciências intermediárias entre a física e a matemática (como a ótica, a música, astronomia), o que favorece a existência de uma subordinação entre as ciências, sendo a teologia a mais expoente de todas. Enquanto ciência média, a astronomia era na concepção tomasiana, uma argumentação hipotética dos movimentos dos planetas, não havendo a necessidade de tais suposições serem verdadeiras. (Nascimento, 1998, p. 77). 

A proposta do método experimental de Galileu da nova ontologia da natureza, de viés objetivo e científico, se afastava da compreensão de Tomas de Aquino, uma vez que aquele entendia que a realidade, a natureza em si, era matemática e não uma mera suposição. De igual forma, Galileu se afastava da compreensão aristotélica de centralidade da teologia na transmissão e no controle do conhecimento. Seu foco não foi meramente denunciar o obscurantismo da explicação teórica, e sim, refutar Aristóteles em suas explicações teóricas do cosmo, recusando suas premissas, que se sustentavam com o aparato teológico, onde a ciência era apresenta como o estudo ou conhecimento das causas, sendo essa concebida na perspectiva de finalidade, bem como onde a física ao estudá-la, convergia para a noção de lugar natural, e paralelamente, distinguia entre dois mundos heterogêneos entre si (sublunar e supralunar). 

Galileu apresentou um pensamento cientifico onde houve uma mudança radical com a racionalidade cientifica, rompendo com premissas de uma filosofia natural, a partir da metodologia empirista, com a aplicação da matemática, enquanto a natureza. Isso significou uma nova compreensão da geometrização do espaço e da dissolução do cosmos, a partir dessa interpretação realista da ciência matemática da natureza, indo, portanto, além das abordagens hipotéticas de Copérnico de Tomas de Aquino, o que lhe rendeu a desaprovação da Igreja, que o via como um desobediente ao Concílio de Trento.

Para tornar possível sua compreensão realista, Galileu teve como premissas além das comprovações da observação telescópicas, premissas metodológicas para sua ciência, onde a linguagem matemática distinguiu-se da linguagem metafórica, bem como da moral, da razão teórica, fundando-se uma nova ontologia da ciência, da razão prática. Quanto à teologia, Galileu tentou compatibilizar a Sagrada Escritura e o pensamento moderno, nos termos da matematização da investigação cientifica, onde apontou para a existência de duas linguagens, “uma comum que visa a salvação moral dos indivíduos e outra matemática, própria para a investigação cientifica por ser rigorosa e exata”. (Souza, 2013, p. 45), sendo um rompimento com a moral religiosa ao propor uma investigação natural, pela racionalidade cientifica.

Tal racionalidade cientifica, para ser legítima, para Galileu deveria ser matemática, uma vez que ela é a única para se explicar a natureza, que é “inexorável e imutável”. Tal tese permitiu Galileu opor duas linguagens, a científica (matemática) e a teológica (metafórica). Na compreensão de Galileu, portanto, essa nova ciência é própria de uma nova ontologia, que distingue entre propriedades primárias e secundárias, onde há a substituição do mundo subjetivo, relativista, por um mundo cujo senso comum se dá por meio de idealidades matemáticas. Por ser o mundo matemático, a linguagem que melhor pode lhe expressar não advém da teologia, mas sim da geometria e da aritmética, já que a matemática não tem um caráter abstrato, e sim, físico, natural. 


O PROJETO CARTESIANO

Descartes é um filosofo do século XVII, que herda as investigações cientificas propostas por Galileu. Nesse sentido, é com Meditações, que a filosofia cartesiana se torna o horizonte histórico para a compreensão da filosofia moderna, com seu projeto fundacionista e sistemático da razão, tendo como base a ciência moderna da natureza. O projeto da filosofia cartesiana, ao promover uma crítica acerca da natureza do conhecimento, analisa a questão do método, institui o cogito e apresenta uma das provas da existência de Deus.

Toda essa mudança histórica da filosofia, ou seja, do marco de início do pensamento moderno, se dá com a unificação da física e da astronomia, a partir da matemática na investigação cientifica, que transforma o natural em algo “em si mesmo” matemático. Tal processo de matematização da natureza passa, então, por dois momentos: de um lado, com a matematização direta das formas dos objetos (onde as formas sensíveis do mundo são idealizadas e transformadas em pensamentos meramente geométricos, tendo, portanto, a tese de que “tudo que é extenso é matemático”), e de outro lado, a matematização indireta dos conteúdos da experiência (das propriedades cujos efeitos refletem as propriedades primárias da percepção humana), ou seja, são formas da noção moderna – e cartesiana – do sensível. Por exemplo, os cheiros, sabores e sons, que são nomes e efeitos subjetivos de qualidades primárias.

A consequência desse pensamento moderno é a denominada crise da consciência moderna, ou seja, uma “alienação técnica da natureza”, que passa pela objetivação e matematização da ciência, deixando, portanto, o mundo da vida seu caráter de “subjetivo e relativo”. A objetividade da ciência e do pensamento filosófico moderno propõe que a natureza seja uma estrutura matemática e as questões subjetivas e relativas sejam tratadas enquanto interioridade do sujeito. É nessa crise ontológica que Descartes aponta-se como “o gênio fundador original do conjunto da filosofia moderna” ao propor a filosofia enquanto forma sistemática de uma matemática universal.

Antes de estabelecer as teses básicas de seu Discurso do Método, Descartes se preocupou com as questões metodológicas para poder sistematizar seu projeto metafísico de compreensão da razão de ser. Ter o “cogito” (a certeza da própria existência porque se tem consciência de que se pensa – “penso, logo sou”) como um princípio de seu sistema metafísico, ocorreu apenas após todo um percurso para se descobrir um método geral para a descoberta científica, que culminou na concepção da filosofia como sistema fundado em princípios.

Em Regras para a direção do espírito, de 1628, Descartes aponta a necessidade do método para a procura pela verdade, refutando o método da tradição medieval de demonstração silogística e de comentário, enquanto procedimento que acarretasse na descoberta cientifica. Ao próprio um novo método, Descartes afirmava não somente que tal método medieval não fazia avançar o conhecimento, mas, sobretudo, almejava instaurar uma nova concepção de razão, onde a procura por um método para o conhecimento dependesse do pressuposto de que os objetos desse conhecimento possuam unidade.

Isso ratifica a matematização da natureza, na medida em que a unidade do conhecimento é a unidade da natureza, não cabendo, portanto, qualidades de propriedades matemáticas, alterando a noção clássica de substância. Nesse sentido, a matematização da natureza em Descartes é correlata de um novo método, que é matemático para todo o conhecimento. Essa busca da matemática como generalização da investigação pelo conhecimento decorre da regra de número 2, que afirma que “toda ciência é um conhecimento certo e evidente”, sendo, portanto, rejeitado todo conhecimento apenas provável.

Considerando, porém, que mesmo nas matemáticas, nem todo conhecimento é imediatamente evidente, Descartes aponta em sua regra de número três, que existem dois modos de se adquirir a ciência: a intuição (onde há um conhecimento imediatamente evidente, não sendo aquela intuição sensível, mas sim aquela onde se mostra cada termo ao intelecto), e a dedução (onde há um conhecimento, embora mediado, que se acompanha de certeza, não sendo aquela equiparada a inferência silogística, mas assim aquela pelo qual o intelecto passa de um termo a outro, por meio de relações que promovem inferência entre eles), onde se conclui que a operação fundamental do conhecimento é a análise de conceitos, refutando radicalmente a concepção tradicional aristotélica de que a intuição seja um testemunho dos sentidos, já que está não tem nada a contribuir no processo do conhecimento.

Já em Tratado da luz, Descartes ratifica a tese de distinção entre as propriedades primarias e secundárias, o mesmo que fez nas Sextas Respostas às Meditações, onde explicita que o intelecto é muito mais confiável que os sentidos, acompanhando a distinção da concepção do inventor da física moderna, Galileu, sobre as propriedades primárias e secundárias. Ressalta-se que Descartes, no entanto, teria criticado Galileu, por ter, em sua concepção, se preocupado em explicar somente fenômenos físicos particulares, não se questionando sobre os fundamentos, ou seja, não tendo realizado filosofia, a busca dos fundamentos metafísicos para uma física matemática da natureza, o que se propôs fazê-lo em Meditações.

Ao propor a modificação ontológica radical, Descartes introduziu a noção de substancia como coisa extensa, “res extensa”, recusando a noção de Aristóteles dos quatros elementos, pensando a matéria como extensão. De igual forma, estabelece uma relação de dependência entre a premissa da “certeza e evidência” do conhecimento com o processo de matematização da natureza que Galileu iniciou, culminando na noção de que o real é a pura extensão. Essa mudança se faz acompanhada de um novo método, inaugurando a ciência moderna.

Porém, na Carta-Prefácio de Princípios, Descartes mantém certa relação do seu discurso cientifico com as premissas metafísicas, ao tentar garantir a legitimidade de seu modelo de natureza do conhecimento estabelecendo princípios metafísicos, sustentando a doutrina da criação das verdades eternas. Tal doutrina das verdades eternas aponta que para Descartes, toda a realidade mantém uma relação de dependência radical com a vontade divina, na medida em que são a potencia e a vontade divinas que, em cada instante, mantém o mundo da maneira como ele é. 

Descartes afirma, portanto, que a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a metafísica, o tronco é a física e os galhos são todas as ciências, sendo as principais a medicina, a mecânica e a moral. Nesse contexto, a matemática seria o exercício do método, um paradigma da dedução rigorosa, a linguagem do saber que se pretende rigoroso.


MÉTODO CARTESIANO

A proposta do método cartesiano dá inicio ao pensamento moderno, ao unificar a física e a astronomia, a partir da matemática na investigação cientifica, transformando o natural em algo “em si mesmo” matemático. Nesse sentido, a ciência, e o pensamento filosófico moderno, propõem que a natureza se estrutura matematicamente, bem como que as questões subjetivas e relativas sejam tratadas enquanto interioridade do sujeito, dando, portanto, um caráter objetivo à ciência.

Assim, caberia à matemática operacionalizar o encadeamento ordenado dos elementos, de forma regrada e proporcional, já que a matemática é também o caso exemplar de procedimento metodológico no percurso pela descoberta do conhecimento efetivo, que é uno e certo. 

Com isto, Descartes leva adiante seu procedimento crítico, e em Discurso do Método, apontando os preceitos para se que tenha uma boa condução do entendimento que fora demonstrado pela matemática, enquanto fundamento investigativo. Para tanto, ele acredita ter chegado a regras fáceis e certas, que o possibilitam, ao evitar o engano, chegar tranquilamente ao conhecimento solido. 

Assim, são explicitadas as quatro regras do método cartesiano de investigação:

A primeira regra do método diz respeito a não se tomar por verdadeiro aquilo que não for certo e evidente em absoluto, ou mesmo que possibilite espaços para quaisquer dúvidas. 

Nas palavras do próprio Descartes, tal preceito diz respeito a jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir nos meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida (DESCARTES, 1979, pp. 45-46).

Assim, o método cartesiano busca que se evite a prevenção, não se mantendo fiel a certas opiniões sem tê-las analisado pelo método, bem como a precipitação, onde por julgamentos apressados, têm-se juízos apenas recebidos sem maiores reflexões, podendo ser tais juízos duvidosos, não claros e evidentes. Por fim, aponta para a necessidade de se libertar de preconceitos e prejuízos, estando livre para receber elementos que assegurem o conhecimento, sendo a duvida que auxilia no caso da prevenção.

A noção de clareza ou certeza dessa primeira regra aponta para a recusa de tudo que for provável, devendo-se confiar apenas naquilo que for perfeitamente conhecido, ou seja, aquilo que se revela enquanto simples, justamente por ser, em sua essência, claro e distinto. Tal clareza e distinção podem ser percebidas pela intuição. Aqui se ressalta que a concepção de intuição não é a alimentação do conhecimento por dados sensíveis, como se propunha a teoria medieval. Trata-se de um tipo de visão intelectual, onde se pode aprimorar o conhecimento por ser algo que se apresenta conectado estreitamente com seu conteúdo representado, de forma simples e fácil. 

A segunda regra, por sua vez, é a análise. Descartes a apresenta como sendo o preceito de “dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las”. (Descartes, 1979, p. 45-46).

Justamente por estar vinculada à simplicidade, a verdade permite a intuição. Nesse sentido, tal regra aponta que para se tenha acesso ao uso da luz natural (do conhecimento), é preciso que se faça análise de uma ideia, decompondo-a em seus elementos, em suas menores partes possíveis, possibilitando vislumbrar de uma forma melhor tais elementos. 

Já a terceira regra aponta para a ordem. Descartes a afirma como sendo o preceito de conduzir por ordenar meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros (DESCARTES, 1979, p. 45-46).

Tal regra propõe um encadeamento ordenado dos elementos seguros, claros e indubitáveis, que ampliaria e permitia o conhecimento. Para tanto, se faz uso de uma dedução (concebia de forma diferente da dedução lógica da tradição aristotélica) complementar à intuição que capta tais ideias. 

Por fim, a quarta regra é a da enumeração, onde se busca a visão sintética da cadeia de razões a fim de se ter, na medida do possível, “uma visão do todo” (Souza, 2013, p. 92). Nas palavras de Descartes, tal preceito é “o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir” (Descartes, 1979, p. 45-46).

Por meio dessa regra têm-se uma visão sintética do todo, de forma absoluta e suficientemente completa da solução, o que passa pela realização de uma revisão de todos os elementos do raciocínio, bem como de seu encadeamento, para que nada fique ignorado.


DUVIDA METÓDICA

O projeto cartesiano visa encontrar a verdade, a partir da reconstrução de todo o conhecimento sobre qual se baseia as ciências. Nessa investigação filosófica, a análise da realidade deve ser potencializada em seu limite, a partir do método da dúvida. A indubitabilidade visa, portanto, chegar à certeza sobre o real de forma em geral. Nesse sentido, a dúvida se apresenta enquanto método (para poder se fundamentar o dogmatismo da ciência), sendo universal (atingindo a tudo que não seja certo de forma absoluta), radical (excluindo tudo aquilo que for passível de ser duvidoso) e provisória (pois trata a todas as coisas assim, até que se saiba sua verdade ou falsidade). Para tanto, essa dúvida metódica se divide em natural e em metafísica. 

A dúvida natural é aquela que apresenta razões naturais para se duvidar os dados sensíveis, ou seja, onde se duvida de tudo que o sujeito possa utilizar como fonte de ideias, e que se legitimam enquanto verdadeiras. Nessa modalidade de duvida, volta-se aos dados sensíveis para apontar que estes, em alguns casos, podem levar à formação de ideias que não apresentam a realidade do objeto representado. Para tanto, Descartes apresenta o argumento do sonho, onde neste tipo de estado, há a integração de formas as quais fragilizam o conhecimento sólido, pois não se tem indícios de que essas coisas representadas assim o foram quando o sujeito estava em estado de vigília (acordado) ou de sonho, como no caso das cores, que podem ser retirados do estado de vigília e utilizados no estado de sonho. Tal tipo de dúvida só se encerra com as ideias simples, do campo matemático, onde se entende que partes fundantes daquilo que se apresente pela sensibilidade, ou formado pela imaginação, são compostas também por partes ainda mais simples e mais universais, e que por isso escapam da possibilidade de engano por parte dos sentidos.

Já a dúvida metafísica é o primeiro passo para os outros campos científicos, assegurando um conjunto consistente de ideias, e que se refere ao que não se poderia duvidar a princípio, o qual, sendo possível, possibilita encontrar um conhecimento inabalável, pois representa o momento onde a dúvida se potencializa até suas últimas consequências, chegando às noções que eram desprovidas de quaisquer duvidas, até então.


O COGITO

Descartes, em Meditações, apresentou a principal verdade que encontrou em seu projeto de investigação, que é o “cogito, ergo sum”, considerada como a pedra angular de todo seu pensamento filosófico. Tal termo aparece desta forma na tradução para o latim, de Discours de la Méthode (1637), que Descartes escreveu originalmente em língua francesa e que fora posteriormente traduzido para a língua latina. Tal “cogito”, é o resultado da utilização do método da dúvida. 

Na concepção do projeto cartesiano de investigação, a proposta era colocar em xeque todo aquele conhecimento que era aceito pela sociedade em sua época. Seu principalmente objetivo era reconstruí-lo, fundamentando tal conhecimento humano em bases que fossem consideradas sólidas e seguras.

Quando Descartes coloca em dúvida todo o conhecimento que se possuía, ele concluíra que apenas se poderia ter a certeza que se duvidava. Assim, se se duvidava, pensava. E quando se pensava se existia, ou seja: duvido – penso – existo. 

É necessário pensar para poder duvidar, pensando que tudo seja falso, o que se torna imprescindível que quem pense seja algo, o que atende ao primeiro principio da filosofia cartesiana (penso, logo existo), de forma indubitável, clara e distinta, bem como atingindo o critério pelo qual se pode reconhecer uma verdade, qual seja, a clareza e a distinção. Descartes desta forma examina o que ele é ao analisar o pensamento, o que existe. Trata-se de um pensamento que é independente do corpo, cuja existência independe de lugar e de qualquer coisa material. Trata-se de uma substância pensante (AVELINO, 2008).

Com o “ergo sum”, Descartes conclui seu pensamento, seguindo-se após duvidar de sua própria existência. Tal existência se comprovou ao verificar que ele pode pensar, e desta forma, existe indubitavelmente enquanto sujeito pensante. É a partir disto que o projeto cartesiano apresenta seu primeiro principio da filosofia (eu existo) como sua primeira verdade, demonstrando de onde surgira o desejo que o sujeito possui pelo conhecimento de tudo.

Pelo método cartesiano, a enunciação do cogito marca a Meditações Metafísicas, pois está atrelada a primeira regra do método que é a busca da evidência, ou a regra da clareza e distinção, ou seja, a regra que determina em não aceitar nenhuma coisa como verdadeira se existe alguma dúvida acerca de sua veracidade.

É com o estabelecimento do cogito que se encontra aquilo em relação ao que não se tem nenhuma razão pela qual se pode duvidar, nem mesmo uma razão artificial. O cogito é o fundamento do saber nesse sentido, ou seja, ao seguir rigorosamente o método da clareza e evidência.

Pelo cogito, enquanto primeiro princípio ontológico, e, portanto, não empírico, que toda a investigação cientifica apresentará tudo que existe. Trata-se da primeira ideia clara e evidente, e desta forma, não que se pode ser colocada em questionamento pela razão lógica, uma vez que ao negá-la, já se está duvidando, isto é, quando se nega o cogito passa-se automaticamente a reafirmá-lo. Por fim, é por meio da concepção do cogito que a filosofia cartesiana passa a propor a apresentação da concepção da existência divina.



A BUSCA PELA VERDADE OBJETIVA


No projeto cartesiano em busca da verdade, a partir da reconstrução de todo o conhecimento sobre qual se baseia as ciências, a análise da realidade passa a ser potencializada em seu limite, a partir do método da dúvida, ao ponto de chegar ao cogito, ou seja, à enunciação da realidade do sujeito meditador, que possui o pensamento enquanto essência. 

Por cogito tem-se o sujeito meditador, que tem ideias que representam a ele mesmo ou que representam a sua dimensão interna. Trata-se do processo pelo qual o sujeito, em suas meditações, coloca em xeque todas suas antigas ideias e opiniões, percebendo que apesar de não pode fiar-se em suas ideias – não sabe se realmente lhe fornecem informações legitimas sobre aquilo que representam –, sabe que ainda assim deve existir enquanto ser. Tem consciência que ele mesmo existe enquanto certo tipo de atividade, como pensamento, o qual, por sua vez, manifesta-se em diversas modalidades, inclusive por meio de dúvida de opiniões e de ideias. 

Essa dimensão subjetiva (ser e pensamento) resiste a qualquer modalidade de dúvida metódica, seja de caráter natural ou metafísico, apresentando-se com clareza, distinção e indubitabilidade – regras da primeira regra do método. 

Para ultrapassar a dimensão subjetiva da existência de realidade de objetos externos ao sujeito visa à ampliação do campo do saber, o sujeito precisa inspecionar a existência de outras ideias presentes em si mesmo e que refira a outras coisas que não sejam o sujeito e que ele possa realmente conhecer com a mesma força com que ele conhece a si mesmo enquanto ser pensante. 

Dentre tais ideias presentes no próprio sujeito está a ideia de Des, enquanto representação de algo exterior ao sujeito. Para melhor encontrar ideias legitimas de outras coisas objetivas presente no sujeito é preciso, portanto, que reveja as suas próprias ideias, uma vez que pela regra do método cartesiano, não se pode confiar em dados sensíveis, por não serem claros e distintos, portanto, verdadeiros.

No entanto, para que se haja a ampliação do conhecimento para além do cogito, o caminho é voltar-se para si mesmo, mesmo que tais ideias encontradas não sejam confiáveis no momento preciso em que ele se encontra nas meditações. Em suma, parte-se da dimensão subjetiva para se afirmar ideias legitimas que seja reais representantes de outras coisas que não sejam o sujeito, o que legitima a analise da ideia acerca de Deus presente no sujeito. 

Deus, enquanto objeto de conhecimento, passa a ser analisado enquanto ideia na perspectiva de sua noção de perfeição. A condição de perfeição faz com que o sujeito passe a retomar as ideias não exclusivamente pelo ponto de vista da duvida, mas sim à luz de clareza e distinção, própria do método do cogito, uma vez que possibilita analisar as ideias do sujeito, bem como a ideia de Deus, para saber se não é mera projeção interna ou uma ideia objetiva que extrapola o cogito.


DEUS COMO VERDADE OBJETIVA

Descartes percebeu que existem algumas ideias que parecem ter nascido com ele, cujas fontes são internas, sem precisar de outras observações que não sejam subjetivas, bastando tão somente o uso da reflexão para alcançá-las, razão pela qual podem ser descartadas enquanto objetos externos ao sujeito. Outras ideias parecem que foram inventadas ou formadas por ele, com caráter ficcional, não sabendo se tais ideias foram realmente inventadas por ele de alguma maneira ou se suas origens derivam de forma comum ao próprio sujeito. Por fim, há um terceiro tipo de ideias, que parece haver fortes indícios de expressarem coisas que são exteriores ao sujeito, e que, portanto, advém de certos objetos que afetam aos sentidos do sujeito. 

Para tanto, o autor acata as ideias como reais representações das coisas dadas pela própria natureza ou enquanto concordância da ideia com seu objeto, por parte da vontade do sujeito. A natureza não parece fornecer argumentos fortes que revelem a existência de uma realidade exterior, não sendo cabível a defesa da existência do objeto perfeitamente figurado pela ideia como exterior ao sujeito apenas por um instinto natural. De igual forma, a suposta origem não voluntária das ideias sensíveis não pode ser comprovada com total certeza, pois não se trata de projeção de ordem subjetiva, como no caso dos sonhos. As ideias enquanto ideias não são distintas entre si. Já enquanto representações se diferem como ideias e exemplos. Ideias de representações de objetos, de substancia, não são superiores às ideias que representam modos ou acidentes, já que estas possuem uma relação de realidade objetiva e de realidade formal. 

É certo que no percurso da investigação cartesiana sobre a existência de ideias que representam objetos que extrapolem a realidade subjetiva do sujeito, ele já levantava a ideia de que o sujeito possui em si a ideia de Deus, inclui suas características de ser soberano, eterno, onipotente, infinito. Essa ideia de Deus é adotada de mais realidade objetiva do que todas as demais que tocam à representação de seres que são finitos e limitados, como o próprio sujeito. 

Essa noção de nível de realidade objetiva representado pelas ideias se completa com a noção de causalidade nas ideias. É com essa noção de causalidade que a ideia de Deus se fundamenta como realidade objetiva, e, portanto, extrapola a dimensão subjetiva do sujeito. Isso se justifica uma vez que do nada as coisas reais não existiriam. Pela noção da causa, que é Deus, se chega ao objeto representado sem se precisar comprovar sua existência. Há uma relação de realidade e perfeição nesse contexto enquanto fruto da existência divina, já que é a causa é superior aos seus efeitos, ou seja, Deus é superior a tudo por ele mesmo criado. 

A ideia de Deus, perfeito, de alguma forma é colocada no sujeito, já que ele, o sujeito, é imperfeito e limitado, o que refuta a possibilidade de sê-lo, ele próprio, a causa de todas as coisas. Da mesma forma que a ideia de Deus não pode surgir de algo limitado que é o ser humano, também ela não pode representar uma possível espécie de falsidade material, como era a ideia do Gênio Maligno. A ideia de Deus está acima de todas as outras e tem a máxima realidade formal e mais verdadeira possível

A ideia objetiva da existência de Deus é positiva. Liga-se estreitamente às perfeições divinas, e, portanto, não emanam do próprio sujeito, que é limitado. É elevada ao nível de clareza e distinção, como o cogito, pois o critério de verdade da primeira regra do método, foi alcançado. O sujeito não possui a capacidade, o poder, de autocriação e de auto-conservação, razão pela qual é obrigado a entender que a causa de sua realidade é outro ser, superior, que é o fundamento das ideias de perfeição e de causa últimas das coisas.

Portanto, o sujeito adquire a ideia de Deus, uma vez que esta se origina junto ao próprio sujeito, a partir de seu surgimento. Deus, perfeito, se encontra no sujeito meditador porque é Ele seu criador, fazendo com que tal ideia, deste sua origem, se mantivesse nesse sujeito criado. Quando o sujeito realiza uma profunda reflexão, percebe que dentre as ideias que possui, deparou-se com uma causa para as mesmas, porém tal causa que ele não encontrou em si próprio, pois as ideias incluem a ideia de Deus, que é perfeito e criador, já ele em si mesmo não pode ser a causa de si de próprio, pois não vê em si mesmo a perfeição exigida por tais ideias. 



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SOUZA, A. C. F. Descartes e o nascimento da Filosofia Moderna: guia de estudos. André Chagas Ferreira de Souza, João Geraldo Martins de Cunha. Lavras: UFLA, 2013.



OBSERVAÇÃO: 


Este texto é um resumo que produzi com o material de aula de disciplina “HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA I” da Graduação em Licenciatura para Filosofia da UFLA – Universidade Federal de Lavras EaD Campus Governador Valadares, produzido em 30/09/2013.