sexta-feira, 24 de setembro de 2010

E DEUS RESOLVEU CONVERSAR ...

Foto tirada em Belo Horizonte, no dia 21 de julho de 2010.

A morte, mesmo que anunciada, assusta. Ela tem o poder de parar toda nossa rotina e nos fazer chorar, lembrar de momentos em que fomos felizes e das conversas que dedicamos com alguém que gostamos e que já se foi. Esse mesmo alguém que a morte resolveu vitimar.

A morte é cretina, ordinária. Ela vem com tudo e não há nada que a faça parar. Nem ela e seus efeitos. Continuar a vida depois de sua passagem demanda de tempo e de apoio – dos que ficaram, da fé transcendental e das crenças religiosas sobre o pós-morte, do trabalho para ocupar a mente, e do tempo.

Sua vítima mais próxima de mim foi atingida na ultima quarta. Tia Lora. Para quem não conhece minha historia de vida, não sabe o significado desta tia. Explico. Em 2008 na seqüência de um entendimento de estilo de vida até então vivido, fui para a cidade de Belo Horizonte cursar Teologia. Esse era o contexto em que me via e cursar essa faculdade seria o ápice de uma trajetória. O verbo foi conjugado no tempo certo: seria. Em razão de vários acontecimentos, vi-me desamparado por todos que prometeram apoio. Tia Lora apareceu para mim como um anjo, que mesmo passando por dificuldades físicas em razão de um doloroso tratamento quimioterápico, abriu sua casa e me acolheu literalmente. Vivi o ano de 2008 dependendo quase que exclusivamente dela. Comer, beber, ter um teto, ou seja, o básico me foi dado por ela. Gratuitamente. Generosamente. Não media esforços para que eu passasse por aquele período da minha vida, no meu tempo.

Pensando agora nos fatos, resgatando as memórias de nossas várias conversas, entendo que ela sabia desde o inicio que aquele não seria o meu caminho. Sabia que aquele período seria o período mais crítico da minha vida, porém o mais importante para eu me definir, me posicionar diante das dificuldades e diversidade da vida, me conhecer enquanto ser, humano, profissional, criatura, sexual e religiosamente. Nunca se posicionou claramente a este respeito, assim ensinou-me que algumas coisas não precisam ser ditas, apenas entendidas e respeitadas.

Deu-me outros ensinamentos, conselhos – valiosos e agora saudosos – sobre o bem viver. Sobre o que é ser cristão. Sobre a importância de estarmos bem com o Cristo e não com a instituição religiosa e suas mazelas. Quando esse período se concluiu e entendi que realmente ele fora importante, porém que o certo seria necessariamente recomeçar, agora de forma mais racional e pragmático, Tia Lora foi novamente um anjo. Mesmo tendo sua situação de saúde piorando e já construído em mim um amparo para seu tratamento, em momento algum se posicionou diferente. Novamente se adaptou e seguiu sua vida, agora sem a ‘obrigação’ que escolheu ter de cuidar de mim.

Com Tia Lora pude vivenciar a dificuldade que as pessoas portadoras de doença oncológica passam. Foram dez meses freqüentando quase semanalmente os hospitais Mario Pena e o Luxemburgo na cidade de Belo Horizonte, passando horas e mais horas dentro dos lotados ônibus do transporte público e mais horas e horas de quimioterapia. Presenciei desmaios, dias bons em que ela não aparentava estar doente e dias difíceis, onde a dor já era sentida e ficar deitada e dormindo era o melhor a se fazer. Presenciei a crença durante todo esse tempo no Deus em que cria. Nunca o sentimento de que aquela doença seria penalização por pecados. Alias, para mim, Tia Lora, não tinha pecados, e se o câncer fosse penalização, precisaria reavaliar as características de Deus. Mas prefiro entender que Deus só concede aquilo que suportarmos. E sabe? É verdade. Ela suportou aquela maldita doença até o fim, bravamente.

Vi também o carinho de uma mãe por seus quatro filhos e seus netos. A preocupação em deixá-los amparados após sua partida. A preocupação com o inventário. A preocupação com o bem estar e a saúde de seus filhos, mesmo estes, às vezes – e como é normal – atarefados em seus trabalhos, não podendo estar muito presentes ao seu redor.

Para mim, Tia Lora, representou o que havia de bom durante todo aquele período. Foi o sinônimo de que nas maiores provações, Ele manda anjos para cuidar de nós. Tia Lora foi mais que uma mãe e um pai emprestado, foi um anjo. O quanto cresci, aprendi, evolui durante esse ano em que convivi com ela! Nossas conversas sobre os mais diversos assuntos, sempre com seus conselhos, de quem já tinha vivido o bastante para saber aconselhar o melhor para mim, sempre me acompanharão. Sua demonstração de afeto mesmo calada e sem contatos físicos me fez ver que se pode amar sem ser pegajoso. Sua força de vontade de viver, atravessando de cabeça erguida e corajosamente, todo seu tratamento quimioterápico, lutando contra a morte até o ultimo momento. São ensinamentos que ficam neste momento.

Hoje, quase dois anos depois desse período doloroso em que vivi, onde sonhos foram exterminados pela crueldade da realidade encontrada, onde paradigmas religiosos me foram furtados pelo o que há de mais podre atrás das cortinas das organizações religiosas, onde a necessidade de se conhecer e se definir enquanto às crenças e orientações se fez e se realizou, posso olhar para trás e ver que evolui. Fez-me bem. Porém não posso e não devo nunca, em momento algum, esquecer do maior ensinamento que tive: o amor, o apoio, nos maiores momentos de dificuldades em que passamos na vida, vem de onde menos esperávamos. Vem dos anjos. Hoje eu sei. Vivenciei. Anjos existem. Tia Lora foi um deles. Pena que Deus gostou tanto das conversas que ouviu e dos conselhos de sua criatura que resolveu chamá-la para conversar. Tia Lora essa hora, descansada das dores terminais, está com certeza com o Pai. Sua missão de ser anjo na vida de todos que com ela conviveu se concretizou.

Ficam os ensinamentos, os conselhos, as reflexões a se fazer sobre o que é importante, e principalmente, o exemplo de vida, e a certeza de que ganhei um anjo, agora do outro lado da vida. Descanse em paz, Tia Lora!

Nenhum comentário:

Postar um comentário