segunda-feira, 30 de setembro de 2013

DESCARTES E O NASCIMENTO DA FILOSOFIA MODERNA



O mundo passou por um processo de modificações epistemológicas e ontológicas a partir das questões levantadas no século XVII, com o advindo da Revolução Científica. Isto marcou o pensamento ocidental no que se diz respeito ao próprio modo de se fazer ciência, bem como de se conceber e argumentar a ciência. Com a ciência moderna, houve uma troca da teoria pela prática. Ela ultrapassou a compreensão da Filosofia Antiga sobre as explicações dos fenômenos naturais, substituindo a noção aristotélica de finalidade enquanto causa final, pela noção de mecanismo, a partir da física e da matemática.

Com tal ruptura ontológica, substituindo a proposta contemplativa e, portanto, teórica de caráter aristotélico-tomasiano – de “subjetividade transcendental” para se explicar a natureza –, para a sistematização da razão, por meio da ciência, Galileu utilizou-se do método experimental para apontar para a natureza com uma atitude instrumental e prática, mudando totalmente a visão de mundo por outra, onde o método experimental, enquanto uma nova postura e linguagem de investigação foi apenas uma das características desta nova proposta de ciência, que se dá com a Revolução Científica.

Galileu teve uma atitude ousada de se pensar os objetos da ciência natural de uma nova forma. Com a introdução do método experimental na ciência moderna com a matemática, Galileu propunha uma nova linguagem e postura, indo além da história da ciência em si, coma descoberta do telescópio, por exemplo. Para além da destruição da teoria do cosmo na perspectiva grega que dominava na era antiga, bem como a geometrização do espaço (Koyré, 1982, p. 154), Galileu apontava para uma transformação da própria ideia de natureza, onde a “mudança da epistemologia exigiu uma nova ontologia” (Souza, 2013, p. 21).

Assim, a revolução cientifica influenciou o pensamento filosófico, porque foi baseada num pensamento cientifico onde houve uma mudança radical com a racionalidade cientifica, rompendo com premissas de uma filosofia natural, a partir da metodologia empirista, com a aplicação da matemática, enquanto a natureza. Isso significou uma nova compreensão da geometrização do espaço e da dissolução do cosmos, a partir dessa interpretação realista da ciência matemática da natureza, indo, portanto, além das abordagens hipotéticas de Copérnico de Tomas de Aquino. Para tornar possível sua compreensão realista, Galileu teve como premissas além das comprovações da observação telescópicas, premissas metodológicas para sua ciência, onde a linguagem matemática distinguiu-se da linguagem metafórica, bem como da moral, da razão teórica, fundando-se uma nova ontologia da ciência, da razão prática.

Essa racionalidade cientifica só é legítima para Galileu se for matemática, uma vez que ela é a única para se explicar a natureza, que é “inexorável e imutável”. Tal tese permitiu Galileu opor duas linguagens, a científica (matemática) e a teológica (metafórica). Na compreensão de Galileu, portanto, essa nova ciência é própria de uma nova ontologia.


AS MUDANÇAS DE CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS NA MODERNIDADE

O trecho em tela aboca para o processo de modificações epistemológicas e ontológicas pelo qual passou o mundo, em sua apresentação histórico-filosófica de problemas a partir das questões levantadas no século XVII, com o advindo da Revolução Científica marcando o pensamento ocidental, em relação ao próprio modo de se fazer ciência e de se conceber, de se pensar, e argumentar a ciência. 

A ciência moderna, nesse sentido, não se tratou apenas de uma troca da teoria pela prática. Ela ultrapassou a compreensão da Filosofia Antiga sobre as explicações dos fenômenos naturais, substituindo a noção aristotélica de finalidade enquanto causa final, pela noção de mecanismo, a partir da física e da matemática. Nessa ruptura ontológica, com a substituição da proposta contemplativa e, portanto, teórica de caráter aristotélico-tomasiano – de “subjetividade transcendental” para se explicar a natureza –, para a sistematização da razão, por meio da ciência, Galileu, em O Ensaiador (1983), utilizou-se do método experimental para apontar para a natureza com uma atitude instrumental e prática, mudando totalmente a visão de mundo por outra, onde o método experimental, enquanto uma nova postura e linguagem de investigação apresentou como apenas uma das características desta nova proposta de ciência, que se dá com a Revolução Científica. 

É o filósofo contemporâneo Husserl, em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental (1935-6), que ao propor uma análise do desempenho de Galileu na Filosofia Moderna, notadamente nesse processo de reconfiguração da cultura cientifica e filosófica do pensamento ocidental, assinala para a crise dicotômica que surgiu a partir dessa tradição moderna da forma de se ver o mundo da vida, onde as oposições (mundo pré-científico e mundo cientifico; mundo intuitivamente dado e mundo percebido através de categorias científicas; subjetividade transcendental e objetivismo da ciência moderna da natureza) visavam fortalecer a filosofia enquanto uma “ciência rigorosa” (1989) que sistematizava a razão, bem como pretendia “estabelecer algo de firme e de constante nas ciências” (Descartes, 1979, p. 85).

Descartes apontou-se, nesse contexto, como aquele que teria se aproximado do cumprimento dessa tarefa de se descobrir o cogito (descoberta da autoconsciência como conhecimento primeiro e basilar do sistema metafísico), porém, para tanto, incorporou a tese objetivista de Galileu sobre a relação entre consciência e mundo, onde a subjetividade e a transcendência deram lugar à objetividade, a consciência e ao objeto, enquanto instâncias reais, enquanto coisas. 

Em Galileu, Descartes encontrou uma atitude ousada de se pensar os objetos da ciência natural de uma nova forma. Com a introdução do método experimental na ciência moderna com a matemática, Galileu propunha uma nova linguagem e postura, indo além da história da ciência em si, coma descoberta do telescópio, por exemplo. Para além da destruição da teoria do cosmo na perspectiva grega que dominava na era antiga, bem como a geometrização do espaço (Koyré, 1982, p. 154), Galileu apontava para uma transformação da própria ideia de natureza, onde a “mudança da epistemologia exigiu uma nova ontologia” (Souza, 2013, p. 21). 

Na realidade, além da mudança da perspectiva de Ptolomeu sobre a natureza e seus movimentos regulares, de caráter concêntrico, para os modelos matemáticos de explicação desses fenômenos que apontavam um caráter excêntrico, a introdução do método experimental de Galileu transformou mais profundamente ao propor uma nova epistemologia e uma nova ontologia, na medida em que se apresentou uma nova compreensão do mundo permeada por uma objetividade cientifica, com objetos reais, uma “matematização indireta” da natureza, onde a mesma se assumiu enquanto ser natural, em si mesmo, matemático. 

Isto significou a ruptura com a ontologia clássica aristotélica, para o qual a natureza o mundo possuía movimentos sublunar e supralunar, sendo a física a ciência que estuda tais movimentos, ao lado da matemática, que por sua vez estuda o que é imóvel e permanente, bem como da teologia, enquanto instrumental para sustentar sua pretensão teórica, formando dessa maneira, as ciências teoréticas da teoria clássica. 

Ainda nesse contexto, tem-se Agostinho com a proposta da existência das “ciências médias” (Grosseteste, 2000), ou seja, ciências intermediárias entre a física e a matemática (como a ótica, a música, astronomia), o que favorece a existência de uma subordinação entre as ciências, sendo a teologia a mais expoente de todas. Enquanto ciência média, a astronomia era na concepção tomasiana, uma argumentação hipotética dos movimentos dos planetas, não havendo a necessidade de tais suposições serem verdadeiras. (Nascimento, 1998, p. 77). 

A proposta do método experimental de Galileu da nova ontologia da natureza, de viés objetivo e científico, se afastava da compreensão de Tomas de Aquino, uma vez que aquele entendia que a realidade, a natureza em si, era matemática e não uma mera suposição. De igual forma, Galileu se afastava da compreensão aristotélica de centralidade da teologia na transmissão e no controle do conhecimento. Seu foco não foi meramente denunciar o obscurantismo da explicação teórica, e sim, refutar Aristóteles em suas explicações teóricas do cosmo, recusando suas premissas, que se sustentavam com o aparato teológico, onde a ciência era apresenta como o estudo ou conhecimento das causas, sendo essa concebida na perspectiva de finalidade, bem como onde a física ao estudá-la, convergia para a noção de lugar natural, e paralelamente, distinguia entre dois mundos heterogêneos entre si (sublunar e supralunar). 

Galileu apresentou um pensamento cientifico onde houve uma mudança radical com a racionalidade cientifica, rompendo com premissas de uma filosofia natural, a partir da metodologia empirista, com a aplicação da matemática, enquanto a natureza. Isso significou uma nova compreensão da geometrização do espaço e da dissolução do cosmos, a partir dessa interpretação realista da ciência matemática da natureza, indo, portanto, além das abordagens hipotéticas de Copérnico de Tomas de Aquino, o que lhe rendeu a desaprovação da Igreja, que o via como um desobediente ao Concílio de Trento.

Para tornar possível sua compreensão realista, Galileu teve como premissas além das comprovações da observação telescópicas, premissas metodológicas para sua ciência, onde a linguagem matemática distinguiu-se da linguagem metafórica, bem como da moral, da razão teórica, fundando-se uma nova ontologia da ciência, da razão prática. Quanto à teologia, Galileu tentou compatibilizar a Sagrada Escritura e o pensamento moderno, nos termos da matematização da investigação cientifica, onde apontou para a existência de duas linguagens, “uma comum que visa a salvação moral dos indivíduos e outra matemática, própria para a investigação cientifica por ser rigorosa e exata”. (Souza, 2013, p. 45), sendo um rompimento com a moral religiosa ao propor uma investigação natural, pela racionalidade cientifica.

Tal racionalidade cientifica, para ser legítima, para Galileu deveria ser matemática, uma vez que ela é a única para se explicar a natureza, que é “inexorável e imutável”. Tal tese permitiu Galileu opor duas linguagens, a científica (matemática) e a teológica (metafórica). Na compreensão de Galileu, portanto, essa nova ciência é própria de uma nova ontologia, que distingue entre propriedades primárias e secundárias, onde há a substituição do mundo subjetivo, relativista, por um mundo cujo senso comum se dá por meio de idealidades matemáticas. Por ser o mundo matemático, a linguagem que melhor pode lhe expressar não advém da teologia, mas sim da geometria e da aritmética, já que a matemática não tem um caráter abstrato, e sim, físico, natural. 


O PROJETO CARTESIANO

Descartes é um filosofo do século XVII, que herda as investigações cientificas propostas por Galileu. Nesse sentido, é com Meditações, que a filosofia cartesiana se torna o horizonte histórico para a compreensão da filosofia moderna, com seu projeto fundacionista e sistemático da razão, tendo como base a ciência moderna da natureza. O projeto da filosofia cartesiana, ao promover uma crítica acerca da natureza do conhecimento, analisa a questão do método, institui o cogito e apresenta uma das provas da existência de Deus.

Toda essa mudança histórica da filosofia, ou seja, do marco de início do pensamento moderno, se dá com a unificação da física e da astronomia, a partir da matemática na investigação cientifica, que transforma o natural em algo “em si mesmo” matemático. Tal processo de matematização da natureza passa, então, por dois momentos: de um lado, com a matematização direta das formas dos objetos (onde as formas sensíveis do mundo são idealizadas e transformadas em pensamentos meramente geométricos, tendo, portanto, a tese de que “tudo que é extenso é matemático”), e de outro lado, a matematização indireta dos conteúdos da experiência (das propriedades cujos efeitos refletem as propriedades primárias da percepção humana), ou seja, são formas da noção moderna – e cartesiana – do sensível. Por exemplo, os cheiros, sabores e sons, que são nomes e efeitos subjetivos de qualidades primárias.

A consequência desse pensamento moderno é a denominada crise da consciência moderna, ou seja, uma “alienação técnica da natureza”, que passa pela objetivação e matematização da ciência, deixando, portanto, o mundo da vida seu caráter de “subjetivo e relativo”. A objetividade da ciência e do pensamento filosófico moderno propõe que a natureza seja uma estrutura matemática e as questões subjetivas e relativas sejam tratadas enquanto interioridade do sujeito. É nessa crise ontológica que Descartes aponta-se como “o gênio fundador original do conjunto da filosofia moderna” ao propor a filosofia enquanto forma sistemática de uma matemática universal.

Antes de estabelecer as teses básicas de seu Discurso do Método, Descartes se preocupou com as questões metodológicas para poder sistematizar seu projeto metafísico de compreensão da razão de ser. Ter o “cogito” (a certeza da própria existência porque se tem consciência de que se pensa – “penso, logo sou”) como um princípio de seu sistema metafísico, ocorreu apenas após todo um percurso para se descobrir um método geral para a descoberta científica, que culminou na concepção da filosofia como sistema fundado em princípios.

Em Regras para a direção do espírito, de 1628, Descartes aponta a necessidade do método para a procura pela verdade, refutando o método da tradição medieval de demonstração silogística e de comentário, enquanto procedimento que acarretasse na descoberta cientifica. Ao próprio um novo método, Descartes afirmava não somente que tal método medieval não fazia avançar o conhecimento, mas, sobretudo, almejava instaurar uma nova concepção de razão, onde a procura por um método para o conhecimento dependesse do pressuposto de que os objetos desse conhecimento possuam unidade.

Isso ratifica a matematização da natureza, na medida em que a unidade do conhecimento é a unidade da natureza, não cabendo, portanto, qualidades de propriedades matemáticas, alterando a noção clássica de substância. Nesse sentido, a matematização da natureza em Descartes é correlata de um novo método, que é matemático para todo o conhecimento. Essa busca da matemática como generalização da investigação pelo conhecimento decorre da regra de número 2, que afirma que “toda ciência é um conhecimento certo e evidente”, sendo, portanto, rejeitado todo conhecimento apenas provável.

Considerando, porém, que mesmo nas matemáticas, nem todo conhecimento é imediatamente evidente, Descartes aponta em sua regra de número três, que existem dois modos de se adquirir a ciência: a intuição (onde há um conhecimento imediatamente evidente, não sendo aquela intuição sensível, mas sim aquela onde se mostra cada termo ao intelecto), e a dedução (onde há um conhecimento, embora mediado, que se acompanha de certeza, não sendo aquela equiparada a inferência silogística, mas assim aquela pelo qual o intelecto passa de um termo a outro, por meio de relações que promovem inferência entre eles), onde se conclui que a operação fundamental do conhecimento é a análise de conceitos, refutando radicalmente a concepção tradicional aristotélica de que a intuição seja um testemunho dos sentidos, já que está não tem nada a contribuir no processo do conhecimento.

Já em Tratado da luz, Descartes ratifica a tese de distinção entre as propriedades primarias e secundárias, o mesmo que fez nas Sextas Respostas às Meditações, onde explicita que o intelecto é muito mais confiável que os sentidos, acompanhando a distinção da concepção do inventor da física moderna, Galileu, sobre as propriedades primárias e secundárias. Ressalta-se que Descartes, no entanto, teria criticado Galileu, por ter, em sua concepção, se preocupado em explicar somente fenômenos físicos particulares, não se questionando sobre os fundamentos, ou seja, não tendo realizado filosofia, a busca dos fundamentos metafísicos para uma física matemática da natureza, o que se propôs fazê-lo em Meditações.

Ao propor a modificação ontológica radical, Descartes introduziu a noção de substancia como coisa extensa, “res extensa”, recusando a noção de Aristóteles dos quatros elementos, pensando a matéria como extensão. De igual forma, estabelece uma relação de dependência entre a premissa da “certeza e evidência” do conhecimento com o processo de matematização da natureza que Galileu iniciou, culminando na noção de que o real é a pura extensão. Essa mudança se faz acompanhada de um novo método, inaugurando a ciência moderna.

Porém, na Carta-Prefácio de Princípios, Descartes mantém certa relação do seu discurso cientifico com as premissas metafísicas, ao tentar garantir a legitimidade de seu modelo de natureza do conhecimento estabelecendo princípios metafísicos, sustentando a doutrina da criação das verdades eternas. Tal doutrina das verdades eternas aponta que para Descartes, toda a realidade mantém uma relação de dependência radical com a vontade divina, na medida em que são a potencia e a vontade divinas que, em cada instante, mantém o mundo da maneira como ele é. 

Descartes afirma, portanto, que a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a metafísica, o tronco é a física e os galhos são todas as ciências, sendo as principais a medicina, a mecânica e a moral. Nesse contexto, a matemática seria o exercício do método, um paradigma da dedução rigorosa, a linguagem do saber que se pretende rigoroso.


MÉTODO CARTESIANO

A proposta do método cartesiano dá inicio ao pensamento moderno, ao unificar a física e a astronomia, a partir da matemática na investigação cientifica, transformando o natural em algo “em si mesmo” matemático. Nesse sentido, a ciência, e o pensamento filosófico moderno, propõem que a natureza se estrutura matematicamente, bem como que as questões subjetivas e relativas sejam tratadas enquanto interioridade do sujeito, dando, portanto, um caráter objetivo à ciência.

Assim, caberia à matemática operacionalizar o encadeamento ordenado dos elementos, de forma regrada e proporcional, já que a matemática é também o caso exemplar de procedimento metodológico no percurso pela descoberta do conhecimento efetivo, que é uno e certo. 

Com isto, Descartes leva adiante seu procedimento crítico, e em Discurso do Método, apontando os preceitos para se que tenha uma boa condução do entendimento que fora demonstrado pela matemática, enquanto fundamento investigativo. Para tanto, ele acredita ter chegado a regras fáceis e certas, que o possibilitam, ao evitar o engano, chegar tranquilamente ao conhecimento solido. 

Assim, são explicitadas as quatro regras do método cartesiano de investigação:

A primeira regra do método diz respeito a não se tomar por verdadeiro aquilo que não for certo e evidente em absoluto, ou mesmo que possibilite espaços para quaisquer dúvidas. 

Nas palavras do próprio Descartes, tal preceito diz respeito a jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir nos meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida (DESCARTES, 1979, pp. 45-46).

Assim, o método cartesiano busca que se evite a prevenção, não se mantendo fiel a certas opiniões sem tê-las analisado pelo método, bem como a precipitação, onde por julgamentos apressados, têm-se juízos apenas recebidos sem maiores reflexões, podendo ser tais juízos duvidosos, não claros e evidentes. Por fim, aponta para a necessidade de se libertar de preconceitos e prejuízos, estando livre para receber elementos que assegurem o conhecimento, sendo a duvida que auxilia no caso da prevenção.

A noção de clareza ou certeza dessa primeira regra aponta para a recusa de tudo que for provável, devendo-se confiar apenas naquilo que for perfeitamente conhecido, ou seja, aquilo que se revela enquanto simples, justamente por ser, em sua essência, claro e distinto. Tal clareza e distinção podem ser percebidas pela intuição. Aqui se ressalta que a concepção de intuição não é a alimentação do conhecimento por dados sensíveis, como se propunha a teoria medieval. Trata-se de um tipo de visão intelectual, onde se pode aprimorar o conhecimento por ser algo que se apresenta conectado estreitamente com seu conteúdo representado, de forma simples e fácil. 

A segunda regra, por sua vez, é a análise. Descartes a apresenta como sendo o preceito de “dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las”. (Descartes, 1979, p. 45-46).

Justamente por estar vinculada à simplicidade, a verdade permite a intuição. Nesse sentido, tal regra aponta que para se tenha acesso ao uso da luz natural (do conhecimento), é preciso que se faça análise de uma ideia, decompondo-a em seus elementos, em suas menores partes possíveis, possibilitando vislumbrar de uma forma melhor tais elementos. 

Já a terceira regra aponta para a ordem. Descartes a afirma como sendo o preceito de conduzir por ordenar meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros (DESCARTES, 1979, p. 45-46).

Tal regra propõe um encadeamento ordenado dos elementos seguros, claros e indubitáveis, que ampliaria e permitia o conhecimento. Para tanto, se faz uso de uma dedução (concebia de forma diferente da dedução lógica da tradição aristotélica) complementar à intuição que capta tais ideias. 

Por fim, a quarta regra é a da enumeração, onde se busca a visão sintética da cadeia de razões a fim de se ter, na medida do possível, “uma visão do todo” (Souza, 2013, p. 92). Nas palavras de Descartes, tal preceito é “o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir” (Descartes, 1979, p. 45-46).

Por meio dessa regra têm-se uma visão sintética do todo, de forma absoluta e suficientemente completa da solução, o que passa pela realização de uma revisão de todos os elementos do raciocínio, bem como de seu encadeamento, para que nada fique ignorado.


DUVIDA METÓDICA

O projeto cartesiano visa encontrar a verdade, a partir da reconstrução de todo o conhecimento sobre qual se baseia as ciências. Nessa investigação filosófica, a análise da realidade deve ser potencializada em seu limite, a partir do método da dúvida. A indubitabilidade visa, portanto, chegar à certeza sobre o real de forma em geral. Nesse sentido, a dúvida se apresenta enquanto método (para poder se fundamentar o dogmatismo da ciência), sendo universal (atingindo a tudo que não seja certo de forma absoluta), radical (excluindo tudo aquilo que for passível de ser duvidoso) e provisória (pois trata a todas as coisas assim, até que se saiba sua verdade ou falsidade). Para tanto, essa dúvida metódica se divide em natural e em metafísica. 

A dúvida natural é aquela que apresenta razões naturais para se duvidar os dados sensíveis, ou seja, onde se duvida de tudo que o sujeito possa utilizar como fonte de ideias, e que se legitimam enquanto verdadeiras. Nessa modalidade de duvida, volta-se aos dados sensíveis para apontar que estes, em alguns casos, podem levar à formação de ideias que não apresentam a realidade do objeto representado. Para tanto, Descartes apresenta o argumento do sonho, onde neste tipo de estado, há a integração de formas as quais fragilizam o conhecimento sólido, pois não se tem indícios de que essas coisas representadas assim o foram quando o sujeito estava em estado de vigília (acordado) ou de sonho, como no caso das cores, que podem ser retirados do estado de vigília e utilizados no estado de sonho. Tal tipo de dúvida só se encerra com as ideias simples, do campo matemático, onde se entende que partes fundantes daquilo que se apresente pela sensibilidade, ou formado pela imaginação, são compostas também por partes ainda mais simples e mais universais, e que por isso escapam da possibilidade de engano por parte dos sentidos.

Já a dúvida metafísica é o primeiro passo para os outros campos científicos, assegurando um conjunto consistente de ideias, e que se refere ao que não se poderia duvidar a princípio, o qual, sendo possível, possibilita encontrar um conhecimento inabalável, pois representa o momento onde a dúvida se potencializa até suas últimas consequências, chegando às noções que eram desprovidas de quaisquer duvidas, até então.


O COGITO

Descartes, em Meditações, apresentou a principal verdade que encontrou em seu projeto de investigação, que é o “cogito, ergo sum”, considerada como a pedra angular de todo seu pensamento filosófico. Tal termo aparece desta forma na tradução para o latim, de Discours de la Méthode (1637), que Descartes escreveu originalmente em língua francesa e que fora posteriormente traduzido para a língua latina. Tal “cogito”, é o resultado da utilização do método da dúvida. 

Na concepção do projeto cartesiano de investigação, a proposta era colocar em xeque todo aquele conhecimento que era aceito pela sociedade em sua época. Seu principalmente objetivo era reconstruí-lo, fundamentando tal conhecimento humano em bases que fossem consideradas sólidas e seguras.

Quando Descartes coloca em dúvida todo o conhecimento que se possuía, ele concluíra que apenas se poderia ter a certeza que se duvidava. Assim, se se duvidava, pensava. E quando se pensava se existia, ou seja: duvido – penso – existo. 

É necessário pensar para poder duvidar, pensando que tudo seja falso, o que se torna imprescindível que quem pense seja algo, o que atende ao primeiro principio da filosofia cartesiana (penso, logo existo), de forma indubitável, clara e distinta, bem como atingindo o critério pelo qual se pode reconhecer uma verdade, qual seja, a clareza e a distinção. Descartes desta forma examina o que ele é ao analisar o pensamento, o que existe. Trata-se de um pensamento que é independente do corpo, cuja existência independe de lugar e de qualquer coisa material. Trata-se de uma substância pensante (AVELINO, 2008).

Com o “ergo sum”, Descartes conclui seu pensamento, seguindo-se após duvidar de sua própria existência. Tal existência se comprovou ao verificar que ele pode pensar, e desta forma, existe indubitavelmente enquanto sujeito pensante. É a partir disto que o projeto cartesiano apresenta seu primeiro principio da filosofia (eu existo) como sua primeira verdade, demonstrando de onde surgira o desejo que o sujeito possui pelo conhecimento de tudo.

Pelo método cartesiano, a enunciação do cogito marca a Meditações Metafísicas, pois está atrelada a primeira regra do método que é a busca da evidência, ou a regra da clareza e distinção, ou seja, a regra que determina em não aceitar nenhuma coisa como verdadeira se existe alguma dúvida acerca de sua veracidade.

É com o estabelecimento do cogito que se encontra aquilo em relação ao que não se tem nenhuma razão pela qual se pode duvidar, nem mesmo uma razão artificial. O cogito é o fundamento do saber nesse sentido, ou seja, ao seguir rigorosamente o método da clareza e evidência.

Pelo cogito, enquanto primeiro princípio ontológico, e, portanto, não empírico, que toda a investigação cientifica apresentará tudo que existe. Trata-se da primeira ideia clara e evidente, e desta forma, não que se pode ser colocada em questionamento pela razão lógica, uma vez que ao negá-la, já se está duvidando, isto é, quando se nega o cogito passa-se automaticamente a reafirmá-lo. Por fim, é por meio da concepção do cogito que a filosofia cartesiana passa a propor a apresentação da concepção da existência divina.



A BUSCA PELA VERDADE OBJETIVA


No projeto cartesiano em busca da verdade, a partir da reconstrução de todo o conhecimento sobre qual se baseia as ciências, a análise da realidade passa a ser potencializada em seu limite, a partir do método da dúvida, ao ponto de chegar ao cogito, ou seja, à enunciação da realidade do sujeito meditador, que possui o pensamento enquanto essência. 

Por cogito tem-se o sujeito meditador, que tem ideias que representam a ele mesmo ou que representam a sua dimensão interna. Trata-se do processo pelo qual o sujeito, em suas meditações, coloca em xeque todas suas antigas ideias e opiniões, percebendo que apesar de não pode fiar-se em suas ideias – não sabe se realmente lhe fornecem informações legitimas sobre aquilo que representam –, sabe que ainda assim deve existir enquanto ser. Tem consciência que ele mesmo existe enquanto certo tipo de atividade, como pensamento, o qual, por sua vez, manifesta-se em diversas modalidades, inclusive por meio de dúvida de opiniões e de ideias. 

Essa dimensão subjetiva (ser e pensamento) resiste a qualquer modalidade de dúvida metódica, seja de caráter natural ou metafísico, apresentando-se com clareza, distinção e indubitabilidade – regras da primeira regra do método. 

Para ultrapassar a dimensão subjetiva da existência de realidade de objetos externos ao sujeito visa à ampliação do campo do saber, o sujeito precisa inspecionar a existência de outras ideias presentes em si mesmo e que refira a outras coisas que não sejam o sujeito e que ele possa realmente conhecer com a mesma força com que ele conhece a si mesmo enquanto ser pensante. 

Dentre tais ideias presentes no próprio sujeito está a ideia de Des, enquanto representação de algo exterior ao sujeito. Para melhor encontrar ideias legitimas de outras coisas objetivas presente no sujeito é preciso, portanto, que reveja as suas próprias ideias, uma vez que pela regra do método cartesiano, não se pode confiar em dados sensíveis, por não serem claros e distintos, portanto, verdadeiros.

No entanto, para que se haja a ampliação do conhecimento para além do cogito, o caminho é voltar-se para si mesmo, mesmo que tais ideias encontradas não sejam confiáveis no momento preciso em que ele se encontra nas meditações. Em suma, parte-se da dimensão subjetiva para se afirmar ideias legitimas que seja reais representantes de outras coisas que não sejam o sujeito, o que legitima a analise da ideia acerca de Deus presente no sujeito. 

Deus, enquanto objeto de conhecimento, passa a ser analisado enquanto ideia na perspectiva de sua noção de perfeição. A condição de perfeição faz com que o sujeito passe a retomar as ideias não exclusivamente pelo ponto de vista da duvida, mas sim à luz de clareza e distinção, própria do método do cogito, uma vez que possibilita analisar as ideias do sujeito, bem como a ideia de Deus, para saber se não é mera projeção interna ou uma ideia objetiva que extrapola o cogito.


DEUS COMO VERDADE OBJETIVA

Descartes percebeu que existem algumas ideias que parecem ter nascido com ele, cujas fontes são internas, sem precisar de outras observações que não sejam subjetivas, bastando tão somente o uso da reflexão para alcançá-las, razão pela qual podem ser descartadas enquanto objetos externos ao sujeito. Outras ideias parecem que foram inventadas ou formadas por ele, com caráter ficcional, não sabendo se tais ideias foram realmente inventadas por ele de alguma maneira ou se suas origens derivam de forma comum ao próprio sujeito. Por fim, há um terceiro tipo de ideias, que parece haver fortes indícios de expressarem coisas que são exteriores ao sujeito, e que, portanto, advém de certos objetos que afetam aos sentidos do sujeito. 

Para tanto, o autor acata as ideias como reais representações das coisas dadas pela própria natureza ou enquanto concordância da ideia com seu objeto, por parte da vontade do sujeito. A natureza não parece fornecer argumentos fortes que revelem a existência de uma realidade exterior, não sendo cabível a defesa da existência do objeto perfeitamente figurado pela ideia como exterior ao sujeito apenas por um instinto natural. De igual forma, a suposta origem não voluntária das ideias sensíveis não pode ser comprovada com total certeza, pois não se trata de projeção de ordem subjetiva, como no caso dos sonhos. As ideias enquanto ideias não são distintas entre si. Já enquanto representações se diferem como ideias e exemplos. Ideias de representações de objetos, de substancia, não são superiores às ideias que representam modos ou acidentes, já que estas possuem uma relação de realidade objetiva e de realidade formal. 

É certo que no percurso da investigação cartesiana sobre a existência de ideias que representam objetos que extrapolem a realidade subjetiva do sujeito, ele já levantava a ideia de que o sujeito possui em si a ideia de Deus, inclui suas características de ser soberano, eterno, onipotente, infinito. Essa ideia de Deus é adotada de mais realidade objetiva do que todas as demais que tocam à representação de seres que são finitos e limitados, como o próprio sujeito. 

Essa noção de nível de realidade objetiva representado pelas ideias se completa com a noção de causalidade nas ideias. É com essa noção de causalidade que a ideia de Deus se fundamenta como realidade objetiva, e, portanto, extrapola a dimensão subjetiva do sujeito. Isso se justifica uma vez que do nada as coisas reais não existiriam. Pela noção da causa, que é Deus, se chega ao objeto representado sem se precisar comprovar sua existência. Há uma relação de realidade e perfeição nesse contexto enquanto fruto da existência divina, já que é a causa é superior aos seus efeitos, ou seja, Deus é superior a tudo por ele mesmo criado. 

A ideia de Deus, perfeito, de alguma forma é colocada no sujeito, já que ele, o sujeito, é imperfeito e limitado, o que refuta a possibilidade de sê-lo, ele próprio, a causa de todas as coisas. Da mesma forma que a ideia de Deus não pode surgir de algo limitado que é o ser humano, também ela não pode representar uma possível espécie de falsidade material, como era a ideia do Gênio Maligno. A ideia de Deus está acima de todas as outras e tem a máxima realidade formal e mais verdadeira possível

A ideia objetiva da existência de Deus é positiva. Liga-se estreitamente às perfeições divinas, e, portanto, não emanam do próprio sujeito, que é limitado. É elevada ao nível de clareza e distinção, como o cogito, pois o critério de verdade da primeira regra do método, foi alcançado. O sujeito não possui a capacidade, o poder, de autocriação e de auto-conservação, razão pela qual é obrigado a entender que a causa de sua realidade é outro ser, superior, que é o fundamento das ideias de perfeição e de causa últimas das coisas.

Portanto, o sujeito adquire a ideia de Deus, uma vez que esta se origina junto ao próprio sujeito, a partir de seu surgimento. Deus, perfeito, se encontra no sujeito meditador porque é Ele seu criador, fazendo com que tal ideia, deste sua origem, se mantivesse nesse sujeito criado. Quando o sujeito realiza uma profunda reflexão, percebe que dentre as ideias que possui, deparou-se com uma causa para as mesmas, porém tal causa que ele não encontrou em si próprio, pois as ideias incluem a ideia de Deus, que é perfeito e criador, já ele em si mesmo não pode ser a causa de si de próprio, pois não vê em si mesmo a perfeição exigida por tais ideias. 



BIBLIOGRAFIA:


ALQUIÉ , F., A Filosofia de Descartes. Lisboa: Editorial Presença, 1993, pp. 33-59 (“A obra científica”).

DESCARTES, R. Meditações concernentes à primeira filosofia. Trad. Jacó Guinsburg e Bento Prado Junior. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

GALILEI, G. O Ensaiador. Trad. Helena Barraco. Coleção Os Pensadores: São Paulo: Abril Cultural, 1983.

GROSSETESTE, R. As linhas, os angulos e as figuras – ou a refração da luz. In: Filosofia Medieval: textos. Trad. Luiz Alberto Boni, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

HUSSERL, E. La crise des sciences européenes et la phénoménologie transcentantale. Trad. G. Granel, Paris: Gallimard, 1976.

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KOYRÉ, A., Galileu e Platão. In: Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Editora Forense-Universitária, 1982, pp. 152-180.

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NASCIMENTO, C. A. R.O estatuto epistemológico das ciências intermediárias segundo São Tomas de Aquino. In: São Tomas de Aquino a Galileu. Campinas: UNICAMP / Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (Coleção Trajetória), 1988.

SOUZA, A. C. F. Descartes e o nascimento da Filosofia Moderna: guia de estudos. André Chagas Ferreira de Souza, João Geraldo Martins de Cunha. Lavras: UFLA, 2013.



OBSERVAÇÃO: 


Este texto é um resumo que produzi com o material de aula de disciplina “HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA I” da Graduação em Licenciatura para Filosofia da UFLA – Universidade Federal de Lavras EaD Campus Governador Valadares, produzido em 30/09/2013.

Um comentário:

  1. Muito bacana o texto e muito completo, alem de bem escrito.

    Lembrou um, bastante descontraído, que escrevi sobre Descartes:

    http://nerdwiki.com/2014/01/12/o-discurso-do-metodo-rene-descartes/

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