No post anterior demos início a essa série sobre a análise do conteúdo e dos significados possíveis acerca do conceito jurídico-filosófico da Dignidade da Pessoa Humana. Destacamos a dificuldade de se definir uma conceituação jurídica única a respeito do tema, sendo necessário o apoio do campo filosófico, com as dimensões elaboradas da análise deste conceito, visando uma melhor compreensão e aplicabilidade para a realidade.
Posto isto, neste momento propomos a traçar uma análise do conceito de Dignidade da Pessoa Humana numa dimensão ontológica, porém não exclusivamente numa análise meramente biológica.
A idéia nuclear desta dimensão entende que a Dignidade da Pessoa Humana é uma qualidade intrínseca da pessoa humana, irrenunciável, inalienável, haja vista tratar-se de uma qualidade que qualifica o ser humano como tal. Desta forma, é impossível compreender que exista um ser humano sem esta qualidade.
Uma análise histórica:
Tal compreensão já existia no pensamento clássico. Estudos comprovam a existência de uma série de autores da antiguidade que tratavam desta dimensão, inclusive além das fronteiras do mundo clássico grego-romano e cristão-ocidental.
Cícero, filósofo estóico, conferiu a dignidade uma dimensão ampla, entendendo que a natureza humana é a posição superior ocupada pelo homem no cosmos. Em razão disto, prescreveu que o homem deve levar em consideração os interesses dos seus semelhantes, pelo simples de também seres humanos, razão pela qual é proibido que se prejudiquem uns aos outros, uma vez que todos estão sujeitos às mesmas leis da natureza.
O sábio chinês confucionista Meng Zi, ainda por volta do século IV a.C, já afirmava que cada homem nasce com uma dignidade que lhe é própria, atribuída por Deus, e que é indisponível para o ser humano e os governantes.
Uma análise Kantiana:
Nessa concepção é impossível que a Dignidade da Pessoa Humana seja criada, concedida ou retirada (neste último, o que pode ocorrer é a violação). O que se pode ocorrer é tão somente ser esta qualidade intrínseca do ser humano reconhecida, respeitada, promovida e protegida. Nas palavras do filosofo dinamarquês C. Hodgkinson trata-se de um “valor absoluto de cada ser humano, que, não sendo indispensável, é insubstituível”.
Kant refere que a Dignidade da Pessoa Humana “não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana”.
Assim, a dignidade existe não somente quando é reconhecida pelo Direito, já que se trata de uma qualidade prévia, já preexistente e anterior a todo reconhecimento.
O caso dos “indignos” e a preexistência da Dignidade:
A concepção Kantiana que afirma ser a Dignidade da Pessoa Humana preexistente a qualquer reconhecimento pelo Direito, por tratar-se de uma qualidade inerente do ser humano, entende que essa qualidade independe das circunstâncias concretas.
Nesse sentido, mesmo que se compreenda a Dignidade da Pessoa Humana como forma de comportamento, onde se reconhecem nas circunstâncias concretas, atos dignos e indignos (ações mais indignas e infames) não se poderá ser seu feitor objeto de desconsideração.
Entende-se que a Dignidade qualidade a todos, no sentido de serem reconhecidos como pessoas – mesmo que não se portem de forma digna com seus semelhantes ou consigo mesmos.
Assim, refutam-se todas as concepções que consideram ser a Dignidade da Pessoa Humana como mera prestação, ou seja, algo que é concedido dependendo eminentemente das ações da pessoa humana, como algo a ser conquistado.
Em oposição, destaca J. González Pérez a divergência do entendimento de São Tomas de Aquino. Este, ao justificar a pena de morte, sustentava que o homem, ao delinqüir, decaia de sua dignidade, rebaixando-se à condição de besta.
O “outro” e a compreensão ontológica jurisdicional:
A concepção da Dignidade da Pessoa Humana como uma qualidade inerente ao ser humano e, portanto, preexistente ao reconhecimento do Direito, bem como independente às ações de comportamento e de merecimento para obtenção subjazem as premissas basilares da doutrina Kantiana e encontra-se contida no Art. 1° da Declaração Universal da ONU ao afirmar que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”.
Assim, o fato do ser humano ser dotado de razão e consciência, representa justamente o denominador comum a todos os seres humanos, a expressão da igualdade.
O Tribunal Constitucional da Espanha ao manifestar-se que a igualdade é um valor espiritual e moral à pessoa ratificou que tal qualidade se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida, o que leva a pretensão ao respeito por parte dos demais.
O Tribunal Constitucional da Espanha ao manifestar-se que a igualdade é um valor espiritual e moral à pessoa ratificou que tal qualidade se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida, o que leva a pretensão ao respeito por parte dos demais.
Günter Durig, doutrinador alemão, com um viés pragmático, entende que a dignidade consiste no fato de que “cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua própria decisão, tornar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua existência e o meio que o circunda”.
A dignidade como autonomia ética abstrata:
Diante dos entendimentos colacionados e do disposto na Declaração Universal da ONU a respeito, ratifica-se que a compreensão da Dignidade da Pessoa Humana reconduz a matriz Kantiana, ao reconduzi-la e concentrando-a na autonomia e na autodeterminação de cada pessoa humana.
Tal autonomia é eminentemente ética, que se evidencia na capacidade da pessoa humana em dar-se às suas próprias leis. Trata-se de uma autonomia que está associada intrinsecamente à noção de liberdade. Não se equiparam, pelo contrário. A autonomia e a liberdade são noções inerentes a pessoa humana, que visam o reconhecimento e a garantia de direitos fundamentais, exigências da Dignidade da Pessoa Humana.
A autonomia/liberdade é uma capacidade potencial que cada ser humano tem de autodeterminar sua conduta, de forma abstrata. Independe para sua efetivação a realização de circunstâncias concretas. Por serem inerentes a pessoa humana, a autonomia e a liberdade ratificam a dignidade de todos, mesmo dos que se encontram absolutamente incapazes.
Conclusão:
Destarte, infere-se que a dimensão ontológica do conteúdo e dos significados do conceito da Dignidade da Pessoa Humana não visa uma biologização da dignidade. Não se trata a dignidade de uma qualidade biológica, inata à natureza humana, geneticamente pré-programada.
Não é resultado necessariamente (ou exclusivamente) de aspecto meramente biológico. Trata-se de uma qualidade intrínseca do ser humano, que somente pode ser reconhecida e protegida pelo Direito e melhor desenvolvida com a autonomia ética de cada pessoa humana, quando livremente esta dar-se às suas próprias leis.
BIBLIOGRAFIA:
DURING, Günter. Der Grundsatz der Menschenwurde durch allgemeine Programmgrundsetze, Munchen: Reinhard Fischer Verlag, 1999.
PÉREZ, Jesús González. La Dignidad de la Persona. Madrid : Civitas, 1986.
SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: Dimensões da Dignidade – Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. 2. ed. rev. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. pags.
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
NOVAES, Edmarcius Carvalho. PARTE 02 - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UMA DIMENSÃO ONTOLÓGICA. Disponível em: http://edmarciuscarvalho.blogspot.com/2011/05/parte-02-dignidade-da-pessoa-humana-uma.html em 09 de maio de 2011.
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