quarta-feira, 25 de julho de 2012

RESUMO: A LINGUÍSTICA SEGUNDO CHOMSKY



Avram Noam Chomsky (1928 - atual).


Lingüista, filósofo e ativista político de esquerda, estadunidense.

Sua teoria lingüística é chamada de Gramática Gerativa


SAUSSURE: A língua é um objeto fundamentalmente social.


CHOMSKY: A língua é um objeto mental. Um sistema de princípios radicados na mente humana. A análise da relação entre mente e língua.

Não se interessa pela análise das expressões lingüísticas consideradas em si mesmo, separadas das propriedades mentais, bem como do aspecto social que a língua apresenta.

Cria o módulo lingüístico chamado Faculdade da Linguagem.

  • A língua é um fenômeno que parece ser exclusivo da espécie humana (tipo particular de estrutura e organização mental).
  • Existe um módulo lingüístico na mente, constituído de princípios responsáveis pela formação e compreensão das expressões lingüísticas, especialmente dedicadas à língua.
  • Essa faculdade é inata (todos os seres humanos nascem dotados dela) e é parte da dotação genética da espécie humana.
  • Chomsky difere de Saussure porque essa faculdade é especifica da língua, não associando às outras formas de linguagem.


GRAMÁTICA GERATIVA

Faculdade da linguagem:

a) Gramática Universal: todo ser humano é dotado da faculdade da linguagem, e toda criança parte do mesmo estado inicial em seu processo de aquisição da primeira língua, independentemente de ser ouvinte ou surda.

b) Ambiente Lingüístico: na medida em que cada criança é exposta a um ambiente lingüístico particular, esse estado inicial da faculdade da linguagem vai se modificando.


Conclusões:
1° - A língua está associada ao estado inicial da faculdade da linguagem + os resultados do desenvolvimento desse estado inicial pelo contato com um determinado ambiente lingüístico.
2° - A partir disto, a Gramática Gerativa consegue:
a) descrever o conhecimento do falante de uma língua em particular;
b) caracterizar o tipo de conhecimento inato que a criança traz para o processo de aquisição de uma língua;
c) explicar os processos que levam uma criança desse ponto inicial do conhecimento lingüístico inato até o conhecimento de sua língua.


Objeto de estudo da Gramática Gerativa:

A língua enquanto competência, ou seja, o conhecimento que um falante tem de sua língua, desenvolvido a partir da informação genética trazida pela faculdade da linguagem em seu estado inicial.

É o conhecimento mental que um falante tem de sua língua. É o resultado do desenvolvimento do conhecimento lingüístico inato, a partir de sua interação com dados de uma determinada língua.

O contrário de competência é performance, ou seja, o uso concreto da língua.

Por exemplo, lapsos de memória não é um problema de competência, mas de performance


Linguisticamente um professor de doutorado e um trabalhador rural de baixo nível de escolarização são iguais?

Ambos têm uma competência com a língua portuguesa igual, o que os diferencia é a competência para utilizá-la em situações sociais diversas.


Como pode isso?

Ambos nasceram biologicamente iguais, ou seja, os dois têm a mesma faculdade da linguagem com as mesmas informações lingüísticas genéticas. Os dois cresceram em ambientes lingüísticos em que o português era a língua falada. Em conseqüência, os dois desenvolvem a mesma língua, a mesma competência.

A diferença sócio-cultural-econômico causa desnível da performance, e não da competência.


O FOCO DA GRAMÁTICA GERATIVA:

Se Saussure analisava os componentes dos signos (significado e significante), Chomsky preocupa-se com os princípios inscritos na mente humana que compõe esse sistema chamado Língua.

Exemplo:

Sintagma Nominal: os constitutivos de uma sentença.

PORTUGUÊS
Os
meninos
inteligentes.
artigo + plural
substantivo + plural
adjetivo +plural

INGLÊS
The
intelligent
boy+s
artigo
adjetivo
substantivo+plural


Sentenças Interrogativas:

PORTUGUES:
Quem o João viu ontem? / O João viu quem ontem?

INGLES:
Única forma: Quem o João viu ontem?


NA LÍNGUA DE SINAIS:

Têm-se entendido que a ordem básica é: SUJEITO – VERBO – OBJETO.

Mas é comum o uso de frases como:

LIVRO            PEDRO           COMPRAR    ONTEM
Objeto             Sujeito             Verbo

Em sentenças interrogativas, podem existir dois tipos de ordem:

JOÃO COMPRAR O QUÊ? 
QUEM COMPRAR CARRO QUEM?


O DESENVOLVIMENTO DA GRAMÁTICA NA MENTE DE UM FALANTE


Há uma dicotomia extrema:

Língua como objeto externo à mente
Língua como objeto interno da mente
Falante chega ao conhecimento de sua língua por meio de um sistema de aprendizagem que envolve processos de observação, memorização, associação, etc.
Os seres humanos nascem dotados de um conjunto de estruturas lingüísticas mentais altamente abstratas e geneticamente determinadas, que funcionam como um mapa, orientando o processo de aquisição de língua para a criança.

Esse conjunto de estruturas lingüísticas mentais é a Gramática Universal.


Porque então as pessoas não falam a mesma língua?

O ambiente em que a criança cresce tem um papel fundamental na aquisição.

É dessa interação da gramática universal com o ambiente lingüístico que se desenvolvem as gramáticas dos falantes ou de qualquer língua de sinais.

Como Chomsky explica a relação entre significante e significado?

Ele não explica. A Gramática Gerativa não se preocupa com questões de significado, de léxico. A preocupação é a estruturação da sentença, ou seja, a sintaxe.

Se Chomsky se preocupa somente com a sintaxe, e as demais partes da análise da Lingüística que não são estruturais, sintáticos, não são também língua?

São. Porém as outras partes para Chomsky não são inatas e, portanto, não são focos da atenção central dos estudos da Gramática Gerativa.

OBSERVAÇÃO:

Material preparado para a aula da disciplina de Linguística, para o Programa de Pós-Graduação em Libras do IMES - Instituto Mineiro de Ensino Superior, produzido em 20/07/2012.

terça-feira, 24 de julho de 2012

RESUMO: A LINGUÍSTICA SEGUNDO SAUSSURE



Ferdinand de Saussure (1857 a 1913).
Lingüista e filosofo suíço.
Sua teoria propiciou o desenvolvimento da Lingüística enquanto ciência autônoma.
Influenciou a teoria da literatura e dos estudos culturais.
Serviu de base para o desenvolvimento do estruturalismo (a realidade social como um conjunto formal de relações) no século XX.
Pronuncia-se mais ou menos “sóissir”.



LINGUÍSTICA:


Idade Antiga: Interesse filosófico. Estudo filosófico, como de Aristóteles, da relação entre língua e pensamento, gramática, retórica, poética.

Idade Média: Tentativa de preservar o latim da influencia das línguas dos povos bárbaros que invadiram o Império Romano. Registro do surgimento de outras línguas como o espanhol, italiano, francês, romano, português.

Idade Moderna: Com o descobrimento da África e das Américas e com o domínio europeu na Ásia, surgiu o interesse lingüístico em relação às diferentes línguas como, por exemplo, as línguas africanas e o chinês.

1816. Historiador lingüístico Franz Bopp. Estudo comparativo da conjugação verbal entre diversas línguas, como o grego, latim, persa, germânico – todas essas línguas têm uma origem em comum: “família das línguas indo-européias”.

  
Análise da língua e da linguagem, não somente na comparação entre as variadas línguas.

Linguagem
·  Ciência, pois não só descreve os fatos lingüísticos, como busca uma explicação coerente para a sua ocorrência.
·  É uma faculdade humana, uma capacidade que os homens têm de produzir manifestações simbólicas: as artes, o cinema, o teatro, a dança e a língua, por isso não tem como ser estudada como uma categoria única de fatos humanos.
·  A linguagem pode ser analisada a partir de várias ciências: fisiológica, antropológica, etc.

Língua  
·  Sistema de valores estruturado e autônomo que é subjacente a toda e qualquer produção lingüística.
·  É uma parte bem definida e essencial da faculdade da linguagem.
·  Um conjunto de convenções necessárias, estabelecidas e adotadas por um grupo social para o exercício da linguagem, por isso é um produto social e também é convencional.
·  A partir da língua, se pode classificar e estabelecer certa ordem da linguagem. A língua é o objeto da lingüística, pois é o produto social da faculdade da linguagem, e por isso, é uma unidade.

AS DICOTOMIAS SAUSSURIANAS:

1. Língua x Fala:


A fala é a prática da língua, porém a língua não se limita ao meio sonoro, gestual, escrito, sendo um sistema.  A fala é individual, já a língua é um produto social, não podendo ser modificada por um único individuo. A Lingüística deve estudar apenas a língua.


Mas o que significa dizer que a língua é um sistema:

Conjunto organizado
Escola
De elementos, que se define pelas características desses elementos
Estudantes
No qual cada elemento se define pelas diferenças que apresenta em relação a outro elemento
Alunos da 1ª série são definidos por oposição aos da 2ª serie.
E por sua relação com todo o conjunto
Alunos do turno matutino e vespertino


Então na língua só há diferenças. E em cada diferença que se estabelece entre cada elemento do sistema é que se revela o seu valor lingüístico.

Exemplo de diferenças na linguagem: /ata/ - fonemas: p, b, m, l.

Exemplo de valor lingüístico: /ar/ - fonemas: bord, cant, mat. E se diferente do /er/ e /ir/.

Na Libras:

Qual diferença, na análise da fonologia, entre APRENDER e SÁBADO? Ponto de Articulação.

Qual diferença, na análise da morfologia, entre SEMANA, DUAS-SEMANAS, TRÊS SEMANAS? Composto de dois morfemas (numero + semana pela configuração de mãos).


2. Significado x Significante:

Signo lingüístico: são unidades lingüísticas que significam alguma coisa. Uma palavra (arvoredo: arvor + edo), uma sentença (uma frase) e um texto são também signos (Os Lusíadas de Camões), pois tem uma significação própria.

Questionamento:

O mundo está repleto de coisas e utilizamos a língua para nomeá-las (e as coisas já existiam antes da língua) ou nossas idéias a respeito do que as coisas são dependem da língua?

Para Saussure:
·  Antes da língua, existem duas massas amorfas (nebulosa, desordenada): a do pensamento e a fônica/gestual
·  Ao impor uma formatação à massa amorfa do pensamento, a língua cria o significado – o conceito.
·  Ao impor uma formatação à massa amorfa fônica/gestual, a língua cria o significante – a imagem acústica (línguas orais) ou ótica (línguas de sinais).
·  Juntos, significante e significado, formam o signo lingüístico.
·  Esse processo de formatação das massas é ao mesmo tempo, onde a língua cria ao mesmo tempo o significado e o significante. Metáfora da folha de papel.


Cada signo tem seu valor, ou seja, cada signo difere-se quando comparado à outros signos. É a partir disso que se pode dizer que a língua é um princípio de classificação: uma forma de interpretar, de organizar e categorizar o mundo.

Para Saussure, naquela época (diferente de hoje), a Lingüística considera a análise dos significantes e significados como formas, não substâncias. Se fossem substancias seriam objeto de estudo, respectivamente da Psicologia e da Fonética acústica e articulatória.


3. Sintagma x Paradigma:

A análise do valor dos elementos lingüísticos deve ser feita considerando dois eixos:

Eixo Horizontal - Sintagmático
Eixo Vertical – Paradigmático
Trata das relações combinatórias.
Trata das relações associativas
Contraste que um elemento estabelece com outro elemento que está adjacente a ele na cadeia de elementos que ocupa a linha horizontal
Os signos que têm algo em comum se associam em memória, formando grupos.
Exemplos:
In-constitu-cion-al.
Forçar a barrar (insistir)
Não dar bola (não dar importância)
Exemplos:
a) Semelhança de significados: Demonstração, exibição, amostragem, exposição.
b) Semelhança de radical: demonstrar, demonstração, demonstrável.
c) Semelhança do sufixo: educação, construção, constituição.

Ressalvas:

Para Saussure, o significante de um signo (imagem acústica ou gestual) é sempre imotivado, arbitrário.

A Libras têm a maioria de seus sinais icônicos. Saussure não levava em consideração as línguas de sinais.


4. Sincronia x Diacronia:

A lingüística é um tipo de ciência que deve ser construída sobre dois eixos:

Eixo do estado
Eixo das evoluções
É o eixo sincrônico
É o eixo diacrônico
A língua é estudada como ela se apresenta em um determinado momento de sua história
A língua é estudada como um produto de uma série de transformações que ocorrem ao longo do tempo

Ressalta-se que as línguas não mudam intencionalmente, são mudanças naturais.

No campo da sociolingüística não há muitas pesquisas profundas sobre as mudanças que ocorreram na Libras.


RESUMO DE SAUSSURE:

  • Diferencia língua de linguagem;
  • Língua é um sistema de valores, em que o valor de cada unidade é computado pela diferença que essa unidade apresenta em relação a outras unidades do sistema, e em relação a todo o sistema.
  • O calculo do valor dos elementos lingüísticos deve ser feito levando em consideração dois eixos: das relações paradigmáticas e das sintagmáticas.
  • Diferença entre língua e a fala, que a manifestação externa desse sistema de valores.
  • A constituição do signo lingüístico como a associação indissolúvel de um significante e de um significado, ambos obtidos, respectivamente, de uma formatação feita em uma massa amorfa fônica/gestual, e em uma massa amorfa do pensamento.
  • A constituição do signo pode ser motivada, mas é sempre convencional.
  • A língua pode ser estudada em sua dimensão estática e em sua dimensão evolutiva/histórica.

OBSERVAÇÃO:

Material preparado para a aula da disciplina de Lingüística, para o Programa de Pós-Graduação em Libras do IMES - Instituto Mineiro de Ensino Superior, produzido em 20/07/2012. 

terça-feira, 10 de julho de 2012

ÉTICA I - ARISTÓTELES E O PROBLEMA DO MAL MORAL NA ÉTICA GREGA




01) SOBRE A TRAGÉDIA, SÓCRATES E PLATÃO:

A relação entre “ser” e “parecer” bom, tão debatida nos dias hodiernos, fora objeto da atenção de Platão em sua obra A República, porém com uma nova perspectiva, uma vez que se desenvolveu por intermédio de argumentos de diversos interlocutores da obra. O filósofo, por intermédio do personagem Sócrates, relaciona a noção de felicidade à justiça e, assim, considera ser feliz apenas o justo, pois é feliz apenas quem pratica a justiça. O ponto principal do diálogo é justamente relacionar a ética e a política, mesmo isso não representando a realidade, mas sendo uma mera proposição do que definiria uma “boa cidade”.

Na procura pelo o que seria a justiça, em A República, algumas teses foram apresentadas: Céfalo, que entende justiça como o ato de “devolver aquilo que se recebeu”; Polemarco, onde a justiça seria a realização do “bem ao amigo e mal ao inimigo”; e, Trasímaco que a entende como o “interesse do mais forte” (PLATÃO, Livro I, p. 9, 11 e 20). O tirano, que vários interlocutores de Sócrates tomam como exemplo, tem uma cara que todos nos conhecemos: ele é a pessoa injusta que detém o poder tendo em vista sua própria utilidade; é aquele que é capaz a submeter os outros com sua força; é quem cria leis convencionalmente chamadas de “leis justas” e que visam só ao máximo proveito de que detém o poder. O homem bom, isto é, o justo se comporta desta forma só por obrigação. Daí a consequência que naquela época, assim como hoje em dia, “aparecer” é mais importante que “ser”. 


Sócrates entendeu que as duas primeiras teses são facilmente refutáveis, pois são definições muito fracas de justiça, encontrando somente certa dificuldade em produzir uma refutação relevante para a última das teses, porém argumenta que os governantes não são os fortes infalíveis, pois caso não obedeçam às leis, podem criam legislações que sejam desfavoráveis à eles próprios, razão pela qual é que cabe aos governantes visar sempre ao bem dos governados (BOTTER, 2012, p. 18). Ressalta-se que essa refutação socrática revelou-se abstrata, baseada em considerações teóricas e questões de princípios, uma vez que seus refutadores firmavam-se na realidade para produzir suas teses.


No prosseguir do diálogo, Glauco apresenta o conceito de justiça como algo convencionado, onde as leis fazem parte dessa convenção, sendo, portanto, a justiça um compromisso dos homens, ou seja, cumprir o que a lei determina visa a não ser repreendido pelo mais forte. (PLATÃO, Livro II, p. 42-43). 


Assim, Glauco prenuncia o “parecer” em detrimento do “ser”, considerando que ao homem melhor é parecer ser justo, visando assim submeter imperativamente os outros a seu domínio, às suas leis tidas como ‘justas’, podendo tirar o máximo de proveito pessoal e manter a sua governabilidade, mesmo que na realidade haja desigualdades e injustiças. Juntamente com Adimanto, Glauco conclui que a justiça parte de uma organização social.


De igual forma, Platão também desenvolve essa concepção de organização social ao realizar um paralelismo entre o individuo e o cidadão (CASERTANO, 2011, p. 41). Em sua concepção, a cidade se constitui em classes sociais, onde cada qual se determina pela aptidão de seus serviços, ou seja, segundo sua virtude. Dessa divisão em classes, como elementos independentes, porém integrados, tem-se uma unidade, que é a sociedade, a “boa cidade”.


As classes sociais que compõem a sociedade na concepção platônica seriam os governantes que dirigem a cidade, os guerreiros que cuidam da defesa da mesma e os produtores responsáveis pelos bens necessários de sustento da cidade. No paralelismo feito com a alma do individuo, a parte da inteligência responsabiliza-se por dirigir o conhecimento (comparando-a com a cabeça no corpo), a irascibilidade pelos desejos e as paixões (comparando-a com o peito) e desiderativa, pela nutrição e a procriação (comparando-a com o ventre).

Cabe, portanto, a cada classe ou parte distinta da alma cumprir suas próprias tarefas, ou seja, suas próprias virtudes. Somente quando cada função é cumprida por seus responsáveis pode-se tornar o individuo e a sociedade justos, sendo a razão tida como o princípio da organização, partir de onde o individuo governa sua vida particular e os governantes, a cidade. A cidade, portanto, na concepção platônica, é boa e virtuosa quando o cidadão faz aquilo que lhe cabe enquanto virtude, segundo sua classe social, “sem intrometer-se em outras atividades”, o que possibilita a “imagem da justiça”. E é a partir dessa virtude que se manifesta a justiça, pois, caso o cidadão não realize sua própria virtude, estará cometendo injustiça. (PLATÃO, Livro IV, p. 145).

Uma cidade boa é aquela que a mostra com seus atributos ser sábia, corajosa, moderada e justa, sendo a justiça e a temperança atributos dos componentes da própria cidade, porque a temperança que
“faz os cidadãos cantarem a uma só voz”, e a justiça “porque ela espalha largamente o exercício habitual da cidadania e envolve a cidade em seu conjunto” (DESCLOS, 2001/2, p. 18 e 19).

Nesse contexto, o malvado é aquela
“pessoa que não possui sabedoria, isto é, que não exerce a parte racional da sua alma, e assim desconhece totalmente o bem ou o confunde a um bem aparente com um bem real”. (BOTTER, 2012, p. 23).

Destarte, pode-se concluir que Platão, em A República, produziu um discurso paradigmático, propondo um modelo científico de uma “boa cidade”, porém não instanciado numa realidade (CASERTANO, 2011, p. 88). Isso não quer dizer que quando Sócrates propôs um modelo a ser realizado em relação à ética e à política, tratava-se de uma mera utopia. Para que essa “boa cidade” fosse concretizada, algumas mudanças precisariam ocorrer, sendo a principal que os Filósofos governassem – em nossos dias que os Chefes de Estado fossem Filósofos –, uma vez que assim os homens poderiam compreender a diferença entre o “bem real” e o “bem aparente”, onde o primeiro é o parecer justo e não ser, enquanto o justo quer ser tal, porém não aparenta.


Por fim, para ter clareza a respeito dessa distinção, Platão, de forma taxativa, aponta ser necessário o conhecimento e a educação, sendo essa a segunda mudança fundamental, ou seja, o realce ao justo peso à educação, uma vez que a mesma possibilita a capacidade de distinguir entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto.





02) ARISTÓTELES E A DEFINIÇÃO DA VIRTUDE:


A virtude é entendida por Aristóteles como uma prática e não como sendo mero conhecimento ou algo natural de cada ser humano possui, sendo essa a razão pela qual se faz necessária a sua prática constante como um hábito. A prática da virtude inclina a pessoa para o bem, que é a busca pela felicidade. 

Para o filósofo existem dois tipos de virtudes: as intelectuais (geradas e desenvolvidas pelo conhecimento racional) e as morais (adquiridas propriamente pelo hábito, não sendo inerentes à natureza humana – o que não impede que o homem tenha uma tendência natural à bondade). É o exercício dessas virtudes o responsável por tornar o homem em justo ou injusto, “pois o mesmo se pode dizer dos apetites e da emoção da ira: uns se tornam temperantes e calmos, outros intemperantes e irascíveis, portando de um modo ou de outro em igualdade de condições”. 

Sendo as virtudes desenvolvidas pelo hábito, o filósofo as considera como disposições. Nas palavras de Zingano, “a disposição é o modo pelo qual o homem se comporta relativamente às emoções”, ou seja, são as tendências de se agir de forma determinada em determinadas circunstâncias. Uma pessoa virtuosa, portanto, apresenta três condições específicas: 

a) A razão: onde a pessoa precisa age conscientemente e não ignorando o que ela faz. 
b) Agir livremente e não por constrangimento ou constrangido nem visando fins alheios.
c) O virtuoso tem de agir com uma intenção firme, por hábito. 

Ressalta-se que se pode avaliar as ações virtuosas quando se observa a intenção da ação e não sobre a análise das ações do agente da mesma. Uma pessoa é boa ou má, segundo o caráter que escolhera e não em razão de suas faculdades ou da ocorrência de paixões. Apesar de não ser uma emoção, a virtude demanda da mesma para ocorrer, por faz parte do processo desse tipo de caráter que o homem escolhe para qualificar suas ações. Segundo o filósofo, a paixão pode ser determinada pela razão, o que justifica que a emoção seja virtuosa. 

Em Aristóteles, a análise da relação entre a razão e a emoção para a ação virtuosa está ligada à tripartição da alma humana, que entende que a alma é o ato primeiro de um corpo natural que possui a vida em potência. Diferentemente de Platão que, considerando os parâmetros de condutas éticas que observava nos seres humanos, dividia a alma em três partes (concupiscível, irascível e intelectível), Aristóteles divide-a analisando as funções que entendia inerentes aos seres vivos. Segundo o estagirita, a alma é composta por: 

a) parte vegetativa: preside às operações concernentes à geração, nutrição, crescimento, etc.; 
b) parte sensitiva: preside a sensação, os apetites e o movimento; 
c) parte intelectiva: preside o conhecimento, a deliberação e a escolha. 

As partes vegetativa e sensitiva estão relacionadas à matéria, já a intelectiva possui uma operação que não depende da matéria e um objeto que é puramente imaterial: a forma inteligível das coisas sensíveis, que “podemos assim considerar que as emoções se formam a partir de uma cognição – sentir é tomar alguma coisa sob um certo ângulo”

Assim o desejo humano sempre dá com o acolhimento da razão, uma vez que as emoções “podem escutar a razão e, deste modo, aperfeiçoar-se, tornando-se assim emoções moderados pela razão". Dessa relação de coadunação entre os dois lados, pode-se chegar à uma ação reta,ou seja, a parte emotiva da alma e a parte racional da alma são parceiras na formação do caráter do homem, devendo a primeira ser primeiro educada pela segunda, para tanto.

Aristóteles apresenta a disposição como gênero da virtude moral por entender que as virtudes são desenvolvidas pelo hábito, onde a razão prevalece ao ensinar o ser humano como “educar” suas emoções, e dessa forma, estabelecendo tendências de se agir de forma determinada, em determinadas circunstâncias. 

Para tanto, devem ser observados três critérios (BOTTER, 2012, p. 37): 

a) agir conscientemente: onde a razão esteja presente, e portanto, não se ignora o que se faz. 
b) agir livremente: não havendo constrangimentos, nem tendo em vista fins alheios, e; 
c) agir por hábito: possuindo uma intenção firme. 

O homem não se torna justo ao praticar atos justos, antes, se torna virtuoso ao saber agir temperadamente em diferentes situações, sabendo controlar suas emoções. Além disso, os atos justos devem ser a fixidez do caráter do indivíduo, direcionando as suas ações. 

De igual forma, o que difere a virtude moral da virtude intelectual (adquirida pelo conhecimento) é justamente essa possibilidade de ser encontrar a mediedade, em grego mesotes, termo que significa o “meio-termo, justa medida”. 

Essa concepção é fruto da sabedoria grega anterior à época do Estagirita, que indica o encontro de uma via média, onde não há excessos. Como na arte e na medicina, onde o meio-termo preserva a excelência das obras e dos procedimentos, o como na filosofia pitagórica onde significava a proporção e a harmonia da perfeição, ou mesmo como na filosofia platônica onde seria a justa proporção entre as diferentes partes da polis e das partes das almas, Aristóteles utilizasse da mediedade como regra para a análise da moral para a ética. 

A boa medida aristotélica é a necessidade de não silenciar as emoções, pelo contrário, buscar encontrar a exata proporção, uma vez que isso possibilita à ação ser adequada do ponto de vista moral, pois estará ancorada, ao mesmo tempo, em emoções e paixões. 

Essa exata proporção das emoções não diz respeito à coisa, e sim em relação a nós, como o filósofo apresenta ao dizer que: 


“Em qualquer coisa, seja ela homogênea ou divisível, é possível distinguir o mais, o menos e o igual, e isto ou em relação à própria coisa ou em relação a nós [...] cada pessoa que tem ciência evita o excesso e a falta, enquanto busca o meio e prefere-o, e esse meio é estabelecido não em relação à coisa, mas em relação a nós” (EN II 6, 1106a26). 


A originalidade da justa proporção aristotélica é sua diferença em relação a justa proporção matemática, pois retira a análise sobre a coisa, e a coloca em relação à nós mesmos: 


“A posição de meio com relação a nós é interpretada assim: com efeito, se comer dez minas é muito e comer duas é pouco para alguém, não por isso o mestre de ginástica mandará comer seis minas; de fato, para quem receber tal porção, ela pode ser muito ou mesmo pouco: para Milo, de fato, é pouco, para um principiante de ginástica é muito. [...] Assim, cada pessoa que tem ciência evita o excesso e a falta, enquanto busca o meio e prefere-o e esse meio é não em relação à coisa, mas em relação a nós” (EN II 6, 1106a28-b7). 


A análise da mediedade talvez possa não ser inédita em Aristóteles, pois como apontam alguns estudos (GAUTHIER e JOLIF, 1970, p. 138, apud R. PEREIRA, 2010), essa compreensão está inserida em duas das mais conhecidas inscrições da Grécia do período clássico: “conhece-te a ti mesmo” e “nada em excesso”. AUBENQUE (2008, p. 264) aponta que a primeira inscrição não diz respeito à necessidade de se encontrar o fundamento de todas as coisas em nós, mas sim alertar-nos para a finitude da vida humana, razão pela qual a prudência enquanto sabedoria dos limites é essencial. 

Nesse sentido, a busca pela justa medida visa à destruição dos extremos (ARISTÓTELES, EN II 5, 1106a25-30). É o equilíbrio entre “sentir excessivo” e a “apatia”, não somente das paixões, mas também das ações, uma vez que as emoções controladas levam à prática de ações moderadas, pois “de modo análogo, também existe excesso, carência e meio-termo no que diz respeito às ações” (1106b25). 

O ser humano, na busca do meio-termo visa conquistar a excelência moral. ZINGANO (2007, p. 146) afirma que a mediedade é a “quididade” da virtude, pois para Aristóteles a razão prática “não pode operar a não ser que existam previamente as disposições morais, isto é, paixões ou emoções moderadas pelo hábito e pelo exercício”

É o hábito que determina os comportamentos humanos em bons ou ruins e assim pode-se encontrar a justa medida relativa a nós em relação às emoções, como é exigida pela razão. A mediedade, em si mesma, enquanto tal, em sua generalidade, é para todos os entes racionais, uma vez que delimita as circunstâncias e aos atos permitidos em cada uma destas, sabendo, portanto, o ser humano, o melhor que se pode esperar em cada circunstância. 

Assim, pode-se concluir que a ação da moral pelo Estagirita passa pelo dualismo da natureza humana: a racionalidade e a irracionalidade, que ao mesmo tempo, necessitam se encontrar e coexistirem. A razão e o desejo, promovem o valor moral do caráter do ser humano, porém somente quando os atos são moderados, determinados, aperfeiçoados pela razão, em detrimento das emoções, que passam a ser “ensinadas” pela razão à controlarem-se. 

A virtude moral é perfeita quando o ser humano satisfaz seus desejos a partir do uso de suas razões, havendo diferenças no modo de agir e em suas disposições. Essa virtude própria, aperfeiçoada pela apreensão da razão, somente se dá quando a parte irracional for determinada pela razão, mudando o simples desejo em um desejo racional. 





03) A ORIGEM DO VALOR MORAL DO ATO: 


A virtude, para Aristóteles, era uma disposição que estava vinculada à escolha deliberada, o que “consiste em uma mediedade relativa a nós, a qual é determinada pela razão, isto é, como a determinaria o homem prudente”. Na busca da ideia de justa medida, “o meio termo é determinado pelos ditames da razão”. É na harmonia entre a razão e as paixões que se pode chegar à virtude. Essa é uma disposição que todos podem ter e, para tanto, se deve fazer uma escolha deliberada, consciente, daquilo que se deseja ao fim, e bem como dos meios para se chegar a tal, sendo sempre guiado pela mediedade. 

Se a razão determina de forma consciente as decisões voluntariamente escolhidas, os desejos, ao contrário, busca a realização do ato desejado, sem a análise do que isso pode vir a gerar, razão pela qual, deve a parte emocional da alma “dar ouvidos” à razão, pois assim, com as escolhas deliberadas o individuo realiza seus atos, consciente dos meios para se chegar ao fim, analisando as consequências para tanto. É pesando a razão que se pode conhecer o impacto que as escolhas deliberadas podem ter, sendo o homem bom ou mau quando suas ações promovem a mudança de seu caráter, podendo ser virtuoso ou vicioso, ou seja, se decide ser guiado pela razão ou meramente pelos desejos, sem que os mesmos sejam educados para pesar a razão em seus atos. 

Essa escolha deliberada é, segundo o filósofo, uma ação voluntária, ou seja, o seu principio motor está no próprio agente e o mesmo tem conhecimento das circunstâncias em que está agindo. Somente essas ações voluntárias podem ser consideradas na construção da virtude, uma vez que esta é a disposição ligada à escolha deliberada, voluntária. 

Nesse sentido, o indivíduo deve ser um bom juiz, uma vez que o mesmo só alcançará o fim desejado se saber escolher sobre o que é moralmente bom e agradável. É por isso que depende do indivíduo “praticar atos nobres ou vis, e se é isso que significa ser bom ou mau”, dependerá dele ser “virtuoso ou vicioso”.

Aristóteles procura mostrar que o valor moral dos atos depende da capacidade que a parte irracional da alma humana tem de ser ensinada pelos ditames da razão, ou seja, quando da harmonização dos desejos com a razão. Para tanto, pode-se formar a boa disposição com a realização da mediedade, ou mesmo formar o desejo racional. Essa formação, no primeiro caso, é dada pela educação e pelas leis, quando se promove disposições moderadas, onde as emoções não estão em excessos, podendo a razão imperar. Já na formação do desejo racional, as virtudes morais se dão quando o agente age, considerando as razões que ele próprio se dá, sendo, portanto, os atos voluntários, e as ações as escolhas e as deliberações do agente. 

A razão aqui apresentada não é aquela entendida por Sócrates e Platão, onde a mesma não tem o papel de distinguir o âmbito teórico e o prático. Essa distinção entre a razão teorética e o pensamento prático feita por Aristóteles está vinculada à definição que o Estagirita promove sobre a virtude moral: 


“A virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha das ações e paixões, e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática” (Aristóteles, EN, II 6, 1106b36). 


Para Aristóteles, assim como a alma irracional tem duas partes (a que ‘dá ouvidos’ à razão e aquela que é ‘surda’ à razão), a alma racional também tem duas partes, com realidades distintas, sabedorias práticas distintas e com virtudes distintas, sendo uma a parte cientifica (epistemonikon) e outra, a parte calculativa (logistikon), onde a investigação da primeira são as realidades invariáveis, e da segunda, as realidades que podem ser diferentes, que mudam, e que possibilita a prática, a experiência. 

A parte cientifica da alma racional tem como objeto o conhecimento científico, já a parte calculativa visa à percepção, tendo assim uma sabedoria prática (phronesis): 


“essa espécie (a prática) de sabedoria não se relaciona apenas com o universal mas também com os casos particulares, que se tornam conhecidos pela experiência (...) A sabedoria prática se relaciona com o fato particular imediato, que é objeto não do conhecimento científico mas de percepção” (Aristóteles, EN VI 8, 1142a13). (destaque nosso). 


Nesse sentido, a virtude da parte cientifica da alma racional é a procura pela verdade, a partir do conhecimento cientifico. Por sua vez, a virtude da parte calculativa da alma racional é a sabedoria prática, que consiste “em saber dirigir corretamente a vida do homem, isto é, em saber deliberar corretamente sobre o que é bem ou mal para o homem” (BOTTER, 2012, p. 59), ou nas palavras do Estagirita, “uma disposição prática, acompanhada de razão veraz, em torno do que é bem e mal para o homem”. (ARISTÓTELES, EN, VI 1, 1139a5). 

Nessa busca pela sabedoria prática, que promove a virtude da parte calculativa da alma racional, visa-se uma disposição prática que consiste na regra de escolha, onde se procura a correção do critério de escolha, como salienta AUBENQUE (2008, p. 61), visando deliberar bem acerca daquilo que é bom para o homem: 


“julga-se que seja característico de um homem dotado de sabedoria prática ser capaz de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para ele, não sob um aspecto particular (...), mas sobre aquelas coisas que contribuem para a vida boa de um modo em geral” (Aristóteles, EN, VI 5, 1140a27). 


A sabedoria prática é uma virtude justamente por sua capacidade de deliberar no tocante às coisas que podem ser diferentes e que dependem de nós. Um desejo correto do fim, juntamente com uma boa deliberação acerca de quais e quantas são as ações e os melhores meios para alcançá-lo, faz com que essa ação seja virtuosa, ou seja, moralmente boa, pois o objetivo é certo e a sabedoria é prática, uma vez que escolhera os meios corretos.




04) O ANALFABETISMO MORAL: A MALDADE NA ÉTICA ARISTOTÉLICA


As diferenças entre os perfis, das pessoas viciosas, distinguidos por Aristóteles: 

1) Akolastos - Homem que visa apenas o prazer, impulsionado pelo desejo do agradável, e que de nenhuma maneira se arrepende por se comportar desta forma. Ele não é punido, faltando-lhe rigor, tendo indulgência excessiva consigo mesmo. 

2) Malakos - Homem que quer fugir da dor e por isso a evita maximamente, sendo mole e voluptuoso. 

3) Theriotes - Homem que apesar de aparentar ser humano é um animal, se colocando fora dos padrões humanos. É o polo posto ao ente divino, um monstro por excesso de vício. 

4) Akrates - Homem que é fraco de vontade, se perde guiado por uma cólera profunda e cega, cometendo o mal, embora saiba que é mal. 

5) Kakos - Homem que voluntariamente adquiriu o hábito do vício, agindo com excesso ou com falta relativamente aos prazeres e às paixões. 




A figura definida do malvado por Sócrates e a figura da pessoa injusta e feliz, que aparece na República: 


Sócrates na República apresenta a figura do malvado como sendo aquele homem que age em razão de sua ignorância, pois foi educado de forma incorreta ou porque vive um tipo de analfabetismo moral, onde suas vontades estão sempre em conflito com sua razão. Platão entende o malvado como a pessoa que age visando seus próprios interesses, não se preocupando com a cidade. Por não possuir sabedoria, não utiliza a racionalidade da alma ,sendo essa pessoa injusta, e também infeliz. O seu oposto, uma pessoa justa e feliz, é aquela pessoa que tem suas práticas mediadas visando à felicidade. 

A felicidade está relacionada com o conceito de justiça, que é a manifestação máxima do desejo. Por ser justo, essa pessoa também é feliz. Em Sócrates e Platão, a virtude estava relacionada apenas à razão, que governa as ações do ser humano. É em Aristóteles que a parte irracional da alma começa a ser considerada. Nessa nova concepção, a emoção 'dá ouvidos' à razão, e a virtude se manifesta com a correta deliberação, através da escolha. É nesse processo de mediedade/justa medida, entre a razão e a emoção, que se pode ter a figura do homem justo e feliz, bem como de seu oposto, aquele que vive nos extremos (seja da razão ou da emoção), sendo por isso, injusto e infeliz. 



O que mudou na tradição cristã em relação à tradição grega?


O homem na tradição grega age mal por natureza, não se arrependendo do que faz. Tendo um posicionamento sádico, ele está sempre disposto à prática do mal. Com seus atos, todos à sua volta são prejudicados. Aristóteles entende o malvado como aquela pessoa que, de forma voluntária, adquire o vício por hábito, sempre com excessos ou faltas, em relação à seus prazeres. Em suma, sua natureza é irremediavelmente má. 

Na tradição cristã, por sua vez, o homem mesmo sabendo o que é bom comporta de forma errada, uma vez que ele não consegue por si só dominar a profunda laceração e dissenso em relação à sua própria vontade que é boa, cometendo assim a maldade em seus atos. O grande diferencial é que a vontade boa do homem, no cristianismo, depende da graça divina presente na vida humana, para que ele consiga então não praticar o mal.



A relação entre virtude e felicidade: 


Num contexto onde viver uma vida feliz ou infeliz representava uma diferença significativa, a análise da ética antiga – sobretudo a aristotélica – a felicidade estava relacionada à concepção de eudaimonia, ou seja,“uma atividade própria da alma humana que se estende ao longo da vida e que todos os homens têm o direito de alcançar” (BOTTER, 2012, p. 72), o que se difere da atual concepção de felicidade, onde a mesma se manifesta em momentos isolados da vivência humana. 

Sócrates na análise do conceito de felicidade – na qual entendia ser o homem justo feliz e o injusto sumamente infeliz –, utilizou-se da ‘função própria do homem’. Para o filósofo, o argumento do ergon significava que cada homem tem uma função que pode realizá-la bem. Se a realiza bem, o faz com virtude, porém se a realiza mal, com vício. Dessa forma, um ente tem uma função a qual se pode atribuir uma virtude ou um vício. A alma, por exemplo, tem como função viver, e em razão disto, tem uma virtude, que é a justiça. Caso a pessoa seja injusta, logo a alma não terá uma virtude, e sim um vício. Conclui-se então que, vive bem quem age com justiça, e vive mal, quem age com injustiça. É feliz e vive bem quem é justo. É desditoso quem vive com injustiça. 

Aristóteles, na análise da eudaimonia, retoma ao conceito de ergon – onde o homem só atinge a felicidade autêntica quando exerce devidamente sua função –, porém de forma articulada. A felicidade para o Estagirita está relacionada à satisfação dos desejos, porém, a partir dessa consideração do argumento do ergon, sendo necessária a satisfação dos desejos com um acordo com a parte racional, uma vez que a razão é o atributo que distingue o ser humano. 

Utilizando-se da teoria da mediedade, Aristóteles entende que o homem só consegue evitar seus excessos quando a paixão ‘dá ouvidos’ à razão, existindo uma harmonia daquela com a razão, onde as emoções são transformadas por ela. Essa harmonização não é acidental, pelo contrário, faz parte da constituição da felicidade própria do ser humano. A eudaimonia é, portanto, essa “satisfação do desejo ‘transformado’ pela razão” (BOTTER, 2012, p. 73). 

Portanto, pode-se concluir que a concepção aristotélica de felicidade humana é aquela onde há o cumprimento da função própria do homem (ergon) e o comportamento de forma correta (mediedade), através de um posicionamento ético-racional. A razão prática, nesse contexto, é busca pela determinação do meio-termo, onde os desejos humanos estão correlacionados à racionalidade. 

É feliz o homem que age satisfazendo seus desejos, ‘dando ouvidos’ porém aos ditames da razão, escolhendo por deliberação suas ações. A deliberação de um fim não pode se dar, visando qualquer um. É preciso escolher os melhores meios para que chegar ao melhor fim, sendo este aquele que se conforma com a racionalidade. O contrário disto é ser malvado, e consequentemente, infeliz. 

O malvado utiliza-se de um preciso raciocínio na escolha dos melhores meios para alcançar o pior fim. Por desconhecer o arrependimento e por não ter conflitos entre suas normas de vida e os seus desejos corruptos, o malvado vive uma ética aleijada e perturbada, pois sua mente é desta forma, além de sua razão ser confusa e sua consciência moral obscura, vivendo sozinho e sem amizades. 


BIBLIOGRAFIA:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2003. 

AUBENQUE, P. A prudência em Aristóteles. Trad. Marisa Lopes, São Paulo: Discurso Editorial, 2008.

BOTTER, Bárbara. Ética 1: Guia de Estudos. Lavras. UFLA, 2012. 

CASERTANO, Giovanni. Uma Introdução à República de Platão. São Paulo: Paulus, 2011. 

DESCLOS, Marie-Laurence. É possível ser corajoso e justo sem ser sábio?. Trad. Alice Bittencourt Haddad. In: Kléos. Revista de Filosofia Antiga. Rio de Janeiro: Pragma – UFRJ, 5, 6, 2001/2002, p. 9-22.

GAUTHIER, R. N. & JOLIF, J. Y. L´Étique à Nicomaque: Introduction et commentaire. Paris, Publications Universitaires de l´Université de Louvain, 1970.

PEREIRA, R. R. Kant, Aristóteles e a razão prática. Estudo para uma leitura aretaica da Ética Kantiana. Tese de doutorado defendida na PUC-Rio no ano 2010. Orientador de Doutorado: prof. Edgar José Jorge Filho; Co-orientador: profa. Barbara Botter.

PLATÃO. A República. Livros I, II, e IV. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

ZINGANO, M. Aristóteles. Ethica Nichomachea I 13-III 8: Tratado da Virtude Moral. São Paulo: Odysseus, 2008. 



OBSERVAÇÃO:


Este texto é um resumo que produzi com o material de aula de disciplina “ÉTICA I” da Graduação em Licenciatura para Filosofia da UFLA – Universidade Federal de Lavras EaD Campus Governador Valadares, produzido em 10/07/2012.


VEJA TAMBÉM:





4. Ética II - David Hume e a Teoria sobre o Sentimento Moral na Filosofia Moderna

5. Ética III - Imannuel Kant e o Fundamento da Metafísica dos Costumes na Filosofia Moderna