sexta-feira, 23 de abril de 2010

PARA LER MICHEL FOUCAULT – FINAL


Obs: Esta postagem encerra o esboço apresentado pelas duas últimas postagens. Sugiro a leitura preliminar destas, para a perfeita compreensão do texto abaixo. Leia a Parte 1 e a Parte 2

A terceira parte deste estudo trata da Genealogia, tendo como referências as produções de Foucault durante os anos de 1970 a 1984. É nesta fase que se apresenta as “polêmicas e os combates” do autor, tendo como finalidade a análise do discurso tido como verdadeiro portador de poder.

As obras ‘Vigiar e Punir’ e ‘História da Sexualidade 1: a vontade de saber’, completam a análise de Vilas Boas sobre o momento genealógico do acervo foucaultino.

1. UMA ECONOMIA POLÍTICA DO CORPO:A obra “Vigiar e Punir” marca a transição da arqueologia para a genealógica de Foucault. É referência dos acontecimentos e experimentos feitos pelo autor a partir de 1968, em relação à psiquiatria, à delinqüência, à escolaridade, etc. É nesta obra que Foucault deixa explícita sua reflexão do entrelaçamento do saber no poder. (pag. 69).

Foucault utiliza-se de um conjunto peremptório afirmando que: onde o poder produz saber; poder e saber estão diretamente implicados; não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber; também não há saber sem que haja ou se constituam, ao mesmo tempo, relações de poder. (pag. 69 e 70).

Nas obras arqueológicas Foucault já problematizou a permeabilidade dos discursos às práticas sociais, apontando para a permutabilidade entre o nível discursivo (o saber – episteme) e o extradiscursivo (as práticas sociais). (pag. 70 e 71).

Na obra “Vigiar e Punir”, o autor trabalha outro eixo: o dispositivo, sendo “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas (...) Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo ...”. (pag. 71).

Visava tal eixo servir como instrumento para a análise do aparecimento histórico das instituições, entendidas como sistemas de coerção, seja discursiva (enquanto saber), seja extradiscursiva (enquanto aplicação social). É análise de como as instituições, enquanto elementos de um dispositivo, articulam as relações entre a produção do saber e modos de exercício do poder. Para exemplificar, Foucault se serve do exemplo do desvendamento da historia genealógica da prisão, entendida como instituição em torno da qual se ergue todo um regime de verdade, um saber, técnicas, discursos científicos, e o poder de punir, naturalmente. (pag. 72 e 73).

Eleva a análise para o estudo que denominou como “economia política do corpo”, estudando a metamorfose dos métodos punitivos a partir da tecnologia política do corpo onde se poderia ler uma historia comum das relações de poder e das relações de objeto. Nesta história, há um dispositivo chamado de disciplinar. Utilizando-se da ilustração proposital da prisão, Foucault visa o processo que leva o homem a elaborar uma vontade de supliciar, de punir, mas também a uma mitigação das penas bem como ao desenvolvimento de um processo de interiorização do controle disciplinar, da inscrição desse controle no seu próprio corpo. (pag. 73 e 74).

Numa análise sobre o corpo, passa por várias possibilidades de análise, como demográfica, patológicas históricas, como sede de necessidades e apetites, como lugar para processos fisiológicos e biológicos. Entretanto, adentro no campo político e sobre as relações de poder sobre ele. Tal relação de poder o invade, o marca, o dirige, o suplicia, o sujeita a trabalhos, o obriga a cerimônias, exige-lhe sinais. Entende que todo investimento ao corpo visa a sua utilização econômica, entendido como força de produção, sujeitando-o a um sistema de sujeição. Assim, o corpo só se torna força útil se for ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. (pag. 75 e 76).

A analise genealógica incube então à analise da tecnologia do corpo, como um investimento político, onde se é desenvolvida toda uma relação de poder através da apropriação de um saber sobre o corpo. Neste contexto, a alma deve ser vigiada, treinada e corrigida, controlada durante toda a sua existência. Não se considera a alma como efeito e instrumento de uma anatomia política, como prisão do corpo. Assim como o conceito teológico cristão, a alma já nasce faltosa e é merecedora de castigo, esquecendo-se que ela nasce antes de procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e coação (pag. 77).

Prossegue Foucault afirmando que a genealogia do poder se inscreve fora da tradição da ciência política e mesmo da filosofia política, que tomam o poder como função coercitiva do Estado. Ele – o modo de exercer o poder – se estende por sobre toda a sociedade, assume formas institucionais e mesmo corporais concretas de técnicas de dominação. Esse poder atravessa corpo, estruturando-se como meio e o fim, de forma minuciosa, alcançando os gestos, as atitudes, os comportamentos, modos de falar, de estar, de ser. (pag. 78).

A análise do autor permite a compreensão do fato político de o Estado não ser o único lugar que promana o poder, ele nem mesmo é a fonte do poder. Não está em nenhum lugar especifico da estrutura social, mas se nessa rede de dispositivos de que ninguém escapa. Assim, o poder não é algo que alguém detém, não é uma propriedade. O poder se exerce, assim, o poder não existe, o que existe são práticas ou relações de poder. (pag. 79).

O poder se dá como uma estratégia, que seus efeitos não são atribuídos a apropriação, mas a disposições, à manobras, táticas, técnicas, a funcionamentos; que se desvende numa rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, e tais relações aprofundam-se dentro da sociedade, não se localizando nas relações do Estado com os cidadãos ou na fronteira de classes. Foucault não associa poder meramente como forma de repressão. Para ele, há poder negativo (que exclui, reprime, recalca, censura, abstrai, mascara, esconde) e poder positivo (que produz, produz realidade e campos de objetos e rituais da verdade). (pag. 80 e 81).

No ponto de vista de Foucault, o poder, para ser eficaz deve produzir uma positividade, de tal modo que o incremento da vida social tem, como preço, o adestramento do corpo, a disciplina do corpo. A disciplina do corpo fabrica corpos submissos e exercitados, corpos dóceis, ela aumenta as forças de utilidade de corpo e ao mesmo tempo diminuição sobre forças em termos políticos de obediência. (pag. 82 e 83).


Assim, a genealogia preocupa-se com a causalidade, valorizando antes a categoria de acontecimento, a proveniência e a emergência dos acontecimentos, relativizando o saber, visto que se autocompreende como um olhar que sabe tanto de onde olha, quanto ao que olha. Assim, com “Vigiar e Punir” Foucault operacionaliza duas operações teórico-práticas: a) analise das práticas sociais e dos saberes por elas instituídas e pela própria constituição do sujeito do conhecimento; b) a utilidade de um discurso enquanto força coercitiva, sendo as ciências humanas tal força, para adestrar e disciplinar o corpo, transformando-o submisso (pag. 84 e 85).

“Vigiar e Punir” representa a tentativa de analisar a proveniência e a emergência de dois acontecimentos: o saber e o poder. O saber representado pelas ciências humanas e o poder pelas relações históricas consideradas ao nível macro e microfísico. Uma tentativa de compreender o investimento político do corpo, num campo político – o corpo como acontecimento, propondo assim uma analise da economia política do corpo. (pag.86).


2. SEXO, CONFISSAO E INDIVIDUALIZAÇÃO:



Antes de entender a problemática central do livro “A História da Sexualidade 1 – A vontade de saber” é necessário o entendimento de dispositivo, conceito segundo Foucault, que se refere a “um conjunto de elementos que abarcam desde discursos a instituições, organizações arquitetônicas, leis, enunciados científicos, etc, cuja função estratégica ou política, é ser o elemento imprescindível para a manutenção de uma forma de dominação”. (pag. 87)

Na obra citada acima a sexualidade é o dispositivo analisado, entendido como forma de poder das sociedades ocidentais, enfocando o sexo enquanto núcleo onde se aloja a verdade dos sujeitos humanos e da espécie. Para tanto, é necessário a superação da representação da sexualidade, que consiste na associação com repressão, processo linear e irreversível da sexualidade ocidental. (pag. 88)

Foucault critica a hipótese repressiva da sexualidade, apresentando três hipóteses que procuram fazer com os discursos serem considerados como verdades, causando efeitos. A primeira hipótese é a associação da repressão sexual com o advento do capitalismo: o adestrado do corpo para focar a capacidade da força viva do corpo para o trabalho. A hipótese segunda é que a repressão sexual é um dos elementos fortes do processo de dominação social, onde o discurso que invista contra tal repressão é considerado transgressão, que procura a libertação e resistência à dominação. Já a terceira hipótese, é que a analise da sexualidade fora da repressão é considerado pelo conceito de poder do discurso da repressão como ‘mentira’, assim, contrariar tal discurso, na realidade, significa fazer esse objeto considerado negativo falar a verdade sobre o sexo. (pags. 89 a 91).

Não obstante, para Foucault, a repressão sexual é positiva. A repressão e a crítica a tal repressão na realidade faz com que as relações de poder se desestabilizem. A positividade da repressão se justifica porque a ação sobre o corpo do individuo faz com que o se evite a percepção do poder em sua forma crua de violência e cinismo. Ao mascarar esse poder cria-se um espaço de aceitação do poder do sexo na medida em que se apresentam como puro limite traçado à liberdade sexual. (pag. 92)

Assim, Foucault acaba por mostrar que ao invés da repressão, houve a partir do século XVIII uma explosão de discursos em torno do sexo, com diferentes posturas e engrenou, conseqüentemente, saberes e novas tecnologias do poder, o bio-poder, ou seja, a tecnologia que toma o corpo como objeto de manipulação e a espécie humana como uma forma da vida biológica que deve ser compreendida a partir de sua finalidade política. (pag. 92 e 93).

A partir do análise do corpo, a espécie humana passa a ser analisada como população. Visa a compreensão do mesmo, até mesmo com necessidades de vitalidade do sistema capitalista. O sexo, portanto, torna-se o problema fundamental, porque nele estão envolvidas as questões relativas aos processos de administração da população em geral, que constituem saberes científicos, exortações religiosas, enunciados jurídicos e tantos outros discursos que visam controlar até mesmo os pequenos atentados contra a moral, as pequenas perversões sem importância, nas palavras de Foucault. (pag. 93 e 94).

Assim, a sexualidade “seria a rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas estratégicas de saber e de poder”. (pag. 94).

O dispositivo da sexualidade tem sua razão de ser: fazer o sexo conhecido. Encontrado em todas as sociedades, tem como funções o casamento, relações de parentesco, transmissão de bens entre gerações, lugares onde são definidos o licito e o ilícito em torna da atividade sexual. Na sociedade sexual, ele encontrou seu lugar na instituição em essência: a família, que, a partir do século XVIII, pacificou e domesticou o sexo. Neste sentido, a família é o lugar obrigatório de amor, de afetos, e neste mesmo envolvimento, surge a figura do incesto, com teor negativo, como regulador do certo e do errado. (pag. 95 e 96).

O discurso sobre a sexualidade surge no momento em que a burguesia descobre seu corpo nu, e o considera coisa importante, frágil, sobre o qual é necessário produzir um conhecimento. É o corpo mesmo corpo que padece de um desejo e de uma privação. À família compete a vigilância contínua, que fornece a expressão do sexo lícito, que controla a sexualidade de seus membros. Ao mesmo tempo em que funda uma concepção do sexo a contrapõe à devassidão, e à imoralidade, que no seu ponto de vista, se encontra no Outro, nas classes subalternas, criando uma repressão de classes, entre os burgueses de famílias e a classe suja, proletária, doente. (pag. 97).

Para o autor, a psicanálise é a potência máxima da vontade de saber do sexo a partir das praticas e dos discursos da verdade do sexo. A vontade de saber do sexo é uma experiência que não se consegue fugir, ela se funda na alma. A vontade é a expressão de uma violência sublimada, que o autor chama de confissão. (pag. 98).

A confissão é um procedimento de extorsão da verdade do individuo; mecanismo presente entre as pessoas desde o nascedouro da civilização cristã. A confissão se torna uma técnica, que inicialmente se ateve apenas no campo religioso, e que visava controlar e disciplinar, em escala ascendente, os corpos das populações, que transbordou paulatinamente do campo religioso para o campo secular e se torna como que natural, fazendo com que não se ache estranho confessar.

Assim, a possibilidade de manifestar um modo de exercício do poder, nem necessitar de um sujeito coator externo, estabelecendo em si mesmo um processo de individualização. A confissão, desta forma, é um procedimento que leva o sujeito a reconhecer em si mesmo sua verdade, como individuo virtuoso ou faltoso, inocente ou pecador, normal ou anormal. Ela induz o individuo a autocorrigir-se, impondo-lhe uma mudança de atitude; ela o induz à culpabilização e, após, à purgação da culpa como destinação inelutável, razão pela qual a confissão é um instrumento de individualização. (pag. 99 e 100).

O dispositivo da sexualidade tem na confissão um elemento onde o sujeito que fala coincidirá sempre com o sujeito para quem se fala: para si mesmo, sua consciência. Segundo Foucault, “o individuo, durante muito tempo foi autenticado pela referência dos outros e pela manifestação de seu vinculo com outrem; posteriormente, passou a ser autenticado pelo discurso de verdade que era capaz de (ou obrigado a) ter sobre si mesmo”. (pag. 100).

Após combater a hipótese repressiva e de demonstrar o mecanismo pelo qual o dispositivo da sexualidade atua, e após definir que a individualização do sujeito reside nesse mecanismo de extorsão e produção de verdade do eu, chamado confissão, Foucault em uma passagem se demonstra utópico, ao afirmar: “Devemos pensar que um dia, talvez numa outra economia dos corpos e dos prazeres, já não se compreenderá muito bem de que maneira os ardis da sexualidade e do poder que sustem seu dispositivo conseguiram submeter-nos a essa austera monarquia do sexo, a ponto de votar-nos à tarefa infinita de forçar seu segredo e de extorquir a essa sombra as confissões mais verdadeiras”. (pag. 101).

No livro “O uso dos prazeres” o autor trabalha que a vontade de saber do sexo não ocorre totalmente, sempre há nas estruturas existentes esse desejo. Encerrando esta obra, Foucault conclui que a descoberta sobre a verdade do sexo passa pela liberdade, pela subjetividade, pela individualidade. (pag. 102 e 103), afirmando:

“Sem dúvida, o objetivo principal hoje não é de descobrir, mas de recusar o que somos (...) Poder-se-ia dizer, para concluir, que o problema ao mesmo tempo político, ético, social e filosófico, que se coloca para nós hoje não é liberar o Estado e suas instituições, mas liberar a nós mesmos do Estado e das instituições que a ele se prendem. É preciso promover novas formas de subjetividades, recusando o tipo de individualidade que nos impuseram durante muitos séculos”.

COMO CITAR ESTE ARTIGO:


NOVAES, Edmarcius Carvalho. "Para ler Michel Foucault - Final". Disponível em http://www.edmarciuscarvalho.blogspot.com/ em 23 de abril de 2010.